quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Como se Deus não existisse

Foto: Shen Wei

Dietrich Bonhoeffer, autor dessa frase tão carregada de conteúdo, foi enforcado pelo regime de Hitler, acusado de conspirar contra o próprio. Sua vida transcorre entre o dia 4 de fevereiro de 1906 e sua execução no dia 9 de abril de 1945, após ter sido condenado por um tribunal em um pacote que reuniu o Almirante Canaris e outros cinco militares de alta graduação e um juiz. Ele era um pastor evangélico filiado à Igreja Confessante, um grupo dentro da Igreja Luterana que ele mesmo liderava em sua oposição aberta ao nazismo e ao silêncio de sua Igreja oficial e em defesa dos judeus.

Pertencia a uma família da alta sociedade prussiana. Havia dedicado a  vida a ser vigário do pastor de Barcelona e ao ensino nos seminários da Alemanha e dos EUA, mas, perante a irrupção do nazismo, se sentiu chamado a se concentrar na luta contra Hitler e se uniu ao grupo do almirante Canaris em sucessivas tentativas de derrubar o ditador.

Foi preso no dia 5 de abril de 1943 e, a partir desse momento, soube que acabaria na forca. No tempo em que passou na prisão, pôde escrever cartas e outros documentos nos quais amadurece seu pensamento e sua religiosidade. Afastado do ensino de futuros aspirantes ao ministério e da pregação nos seminários, sua vida na prisão está destinada ao fracasso da forca e – algo que lhe marcou ainda mais – ao diálogo e em relação com presos alheios a toda ideia religiosa, descrentes ou agnósticos.

Essa circunstância dupla – junto com a correspondência com sua namorada Maria von Wedemeyer, que sempre o trazia para a realidade – o move a elaborar um pensamento novo ou, melhor, a extrair as consequências mais audazes dos princípios do Iluminismo e da evolução da teologia e da filosofia alemãs mediante pensadores como Harnack, Barth e outros.

Extraímos de seus escritos da prisão alguns parágrafos que poderiam resumir seu pensamento e esclarecer e especificar o conteúdo de sua expressão "É preciso viver como se Deus não existisse", que, longe de significar um posicionamento ateu ou negação de Deus, é uma afirmação do Deus que se manifesta para nós através de toda a Bíblia e, principalmente, em Jesus de Nazaré.

- "O Iluminismo condena o homem a resolver todas as questões importantes, não só as científicas e artísticas, mas também éticas e até mesmo religiosas, sem apelar para a hipótese Deus. Não se trata de negar a Deus, mas sim de afirmar a sua inutilidade".

- "As pessoas religiosas falam de Deus quando o conhecimento humano não dá mais de si mesmo, ou quando fracassam as capacidades humanas. Na realidade, limitam-se sempre a oferecer um deus ex machina, ao qual exibem para que solucione os problemas insolúveis... Mas não quero falar de Deus nos limites, mas sim no centro, não nas fraquezas, mas sim na força, isto é, não na hora da morte e da culpa, mas sim na vida e no bom do homem. Nos limites, parece-me melhor guardar silêncio e deixar sem solução o insolúvel".

- "Não podemos ser honestos sem reconhecer que é necessário que vivamos neste mundo etsi Deus non daretur [como se Deus não existisse]... Ele nos faz saber que é preciso que vivamos como seres humanos que chegam a viver sem Deus. O Deus que nos deixa viver no mundo sem a hipótese de trabalho "Deus" é aquele perante o qual estamos constantemente. Diante de Deus e com Deus, vivemos sem Deus. Deus se deixa desalojar do mundo e pregar na cruz. Deus é impotente e fraco no mundo, e só assim está em nós e nos ajuda... Mateus 8, 17 nos indica claramente que Cristo nos ajuda não por sua onipotência, mas sim por sua debilidade e sofrimentos".

Eis aqui a diferença decisiva de todas as demais religiões. A religiosidade do ser humano o remete, em sua miséria, ao poder de Deus no mundo: Deus é o deus ex machina. A Bíblia o remete ao sofrimento e à debilidade de Deus. Só o Deus sofredor pode ajudar. Nesse sentido, pode-se dizer que a evolução do mundo para a vida adulta, fazendo tábua rasa de uma falsa imagem de Deus, liberta a miséria do ser humano para direcioná-la para o Deus da Bíblia, que adquire seu poder e seu lugar no mundo pela sua impotência.

Bonhoeffer confessava da prisão que, frente "às pessoas religiosas, com frequência, não me atrevo a pronunciar o nome de Deus, porque tenho a sensação de produzir um som equivocado e não muito honesto. Frente a pessoas não religiosas, ao contrário, posso nomear Deus ocasionalmente com toda a tranquilidade e como algo óbvio".

É claro que essa linguagem de Bonhoeffer, lutador de primeira fila e mártir do nazismo, se choca frontalmente com a linguagem de Ratzinger, cuja trajetória frente ao nazismo está muito longe de ser tão veemente e decidida como a do pastor da Igreja da Confissão... E, sem dúvida, a tensão do ser humano e de seu espírito ao enfrentar uma morte violenta como a que coube a Bonhoeffer ajudam a alcançar as verdades em toda a sua profundidade.

- Honorio Cadarso
Artigo publicado no sítio Atrio, 18-01-2012. Tradução: Moisés Sbardelotto
Reproduzido via IHU, com grifos nossos.

Nota do autor:
As citações foram extraídas do livro Resistencia y sumisión. Cartas y apuntes desde el cautiverio, que reúne os escritos de Bonhoeffer na prisão. Foi editado pelas Ediciones Sígueme, Salamanca, 2008. Também pode-se consultar um estudo da teologia de Bonhoeffer escrito por Arnaud Corbic, intitulado Cristo, Señor de los no religiosos, disponível aqui (em espanhol), Biblioteca Koinonia.

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