domingo, 22 de janeiro de 2012

A fé cristã exige liberdade e sinceridade


"João Batista é detido, mas nunca nada pode deter a Palavra de Deus e, o primeiro ato da missão de Jesus é chamar um Povo, chamando os seus discípulos. Jesus os chama para segui-lo como discípulos, mas também para segui-lo como sucessores".

A reflexão é de Raymond Gravel, sacerdote de Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, comentando as leituras do 3º Domingo do Tempo Comum (22 de janeiro de 2012). A tradução é de Susana Rocca.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


Referências bíblicas:
1ª leitura: Jo 3,1-5.10
2ª leitura : 1 Co 7,29-31
Evangelho: Mc 1,14-20

Após o chamado dos primeiros discípulos, segundo São João, eis o chamado dos quatro primeiros discípulos, que é narrada diferentemente na versão de São Marcos, o evangelista do ano B. O Jesus discreto e despercebido de São João é substituído por um Jesus cheio de autoridade, de acordo com São Marcos, que, mesmo antes de ensinar, de pregar e de agir, escolhe os discípulos. Ele tem tanta autoridade e carisma, que ninguém ousa contestá-lo. E no entanto, ele não obriga ninguém a crer nele e a segui-lo. Apenas convida: “O tempo já se cumpriu, e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15). E, contrariamente a João Batista, que anunciava um julgamento severo da história, Jesus proclama uma Boa Notícia que convida à conversão e à fé: “Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Mc 1,15b). Mas qual é esta Boa Notícia? O que fazer para vivê-la?

1. A Boa Notícia ou o Evangelho: Se lemos bem no Evangelho de Marcos, o primeiro evangelista, e nos outros depois, a Boa Notícia é Jesus Cristo, o Filho de Deus (Mc 1,1). Mas por que ele se tornou uma Boa Notícia? Jesus tornou-se Boa Notícia pelo acontecimento morte-ressurreição, que nos demonstrou que a morte não tem a última palavra sobre a vida e que a pessoa humana, marcada pelos seus limites e suas fragilidades, pode realizar coisas muito grandes: mais justiça para todos, o respeito do outro, de todo outro, o reconhecimento da dignidade de qualquer pessoa, da capacidade ilimitada de perdoar e de reconciliar-se, o amor incondicional, a partilha das nossas riquezas, a igualdade entre os humanos, a esperança de um mundo melhor. Se isso não é uma Boa Notícia, eu me pergunto o que é…

A Boa Notícia de Jesus Cristo é, também, anunciar a salvação para todos sem exceção. Não são as nossas obras que nos salvam; é a nossa fé no Cristo da Páscoa, no Cristo ressuscitado. As obras vêm depois: “Pois se você confessa com a sua boca que Jesus é o Senhor, e acredita com seu coração que Deus o ressuscitou dos mortos, você será salvo” (Rm 10,9). A fé é a resposta à Boa Notícia e tem por objeto Jesus que foi ressuscitado por Deus e transformado no Cristo, Senhor e Salvador de toda a humanidade. A verdadeira justiça é aquela que vem de fé (Rm 10,6) que é dada pela fé (Rm 3,25), e a justiça recebida pela fé é perdão (Ga 5,24), reconciliação com Deus (Ef 3,12), união com Jesus Cristo (Ef 3,17), e ela inaugura a vida do Espírito (Ef 1,13-14).

O convite de Jesus Cristo à conversão e à fé na Boa Notícia nos chama à nossa liberdade humana. Não é obrigatório; é uma opção livre e sem constrangimento. E a resposta ao convite que nos é feito, deve ser também um chamado a nossa liberdade e a nossa responsabilidade. Não é por nada que São Paulo, na segunda leitura de hoje, convida aos Coríntios a não seguir alguns iluminados da comunidade que, em Corinto, pretendiam proibir a todos o casamento, porque queriam impor a todos o celibato consagrado. Querendo sublinhar o caráter provisório, mas real das realidades deste mundo, do qual o casamento faz parte, São Paulo escreve: “Uma coisa eu digo a vocês, irmãos: o tempo se tornou breve. De agora em diante, aqueles que têm esposa, comportem-se como se não a tivessem; aqueles que choram, como se não chorassem; aqueles que se alegram, como se não se alegrassem; aqueles que compram, como se não possuíssem; os que tiram partido deste mundo, como se não desfrutassem. Porque a aparência deste mundo é passageira” (1 Co 7,29-31).

Infelizmente, nestes propósitos de São Paulo, há um perigo de interpretação que a Igreja não soube evitar: o desprezo do mundo, a falta de engajamento e a evasão fora das tarefas terrestres, como se não fossem necessárias. E no entanto, o pensamento de Paulo e a lógica do Evangelho são todo o contrário. O mundo que vemos requer as nossas energias, a nossa vigilância e a nossa imaginação ao serviço da justiça e a paz. Mesmo sendo essenciais, no entanto, estas realidades são provisórias em relação à nossa pertença ao Cristo da Páscoa. O exegeta Charles Wackenheim escreve: “O cristão não despreza nem os desafios nem as preocupações daqui em baixo; ele deve cuidar para não fechar o seu coração à Palavra de Deus que contesta todas essas visões fechadas”.

E temos o belo exemplo de atitude fechada na primeira leitura de hoje, onde o profeta Jonas fecha no medo os ninivitas para que eles não se convertam: “Jonas entrou na cidade e começou a percorrê-la, caminhando um dia inteiro. Ele dizia: 'Dentro de quarenta dias, Nínive será destruída!'" (Jn 3,4). Durante muito tempo temos funcionado desta maneira, provocando medo nas pessoas: o inferno, os demônios, a morte e a perdição… etc.… Felizmente, hoje, saímos disso. Essa conversa não pega mais. Porque Deus, que é misericórdia, perdão e amor, como poderia ameaçar as mulheres e os homens que são a obra da sua criação? Não são criados à imagem e à semelhança de Deus? Pierre Domergue escreveu: “Certamente, Jonas pronuncia um oráculo de condenação: Nínive será destruída. Certamente, os ninivitas se converteram, e Deus repensou a sua decisão. O leitor desta história profética fica sabendo que não tem mais condenação incondicional: Deus não está obrigado a dar razão aos seus enviados. Ele está somente obrigado a manter a sua própria palavra, que é ternura e misericórdia”.

2. Tornar-se discípulos: Perante a pergunta: o que fazer para viver a Boa Notícia? Eu respondo isto: para viver a Boa Notícia devemos nos tornar discípulos de Cristo, ou seja, deixar-nos ver por Cristo: “Ao passar pela beirado mar da Galiléia, Jesus viu Simão e seu irmão André; estavam jogando a rede ao mar, pois eram pescadores” (Mc 1,16), entender o seu convite: “Jesus disse para eles: «Sigam-me, e eu farei vocês se tornarem pescadores de homens” (Mc 1,17), haver livremente: “Eles imediatamente deixaram as redes e seguiram a Jesus.” (Mc 1,18).

Eis aqui dois símbolos importantes a definir:

1) A rede: Símbolo de sedução. Cair nas redes de alguém é deixar-se seduzir por ele. O Cristo do Evangelho de Marcos é um sedutor; ele seduz tanto que não dá para se escapar dele, daí o ardor dos quatro primeiros discípulos chamados a segui-lo. Fazem-no espontaneamente, com total liberdade.

2) Pescadores de homens: É verdade que a pesca consiste em pegar ou capturar peixes. Mas o sentido da pesca humana utilizado por São Marcos é bem outro. É necessário lembrar que, na Bíblia, o mar é símbolo das forças do mal, e pescar homens é liberar o homem da influência do mar, das forças do mal. Por conseguinte, a missão dos discípulos não consiste em tomar ou capturar homens, mas antes consiste em libertá-los. Essa é a missão da Igreja ainda hoje.

Para concluir, gostaria simplesmente de citar o exegeta francês Jean Debruynne, no seu comentário do Evangelho de hoje: “É a detenção de João Batista que serve de sinal. João Batista é jogado na prisão e isso liberta a palavra do Evangelho como se a prisão de João fosse o encontro marcado para que Jesus saísse do silêncio. Como se uma retransmissão se passasse de João a Jesus. Como se a história mudasse e se passasse do antigo ao novo testamento. João Batista é detido, mas nunca nada pode deter a Palavra de Deus e, o primeiro ato da missão de Jesus é chamar um Povo, chamando os seus discípulos. Jesus os chama para segui-lo como discípulos, mas também para segui-lo como sucessores”. Eu acrescentaria que é em plena liberdade que os quatro discípulos aceitam seguir Cristo, e é com total liberdade, ainda hoje, que nós aceitamos nos tornar discípulos do Ressuscitado, seguir o Cristo Páscoa. Somos, por conseguinte, os sucessores dos primeiros discípulos, que foram também os sucessores de Jesus Ressuscitado.

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