Foto: STJ
Pegando carona na aprovação do casamento civil pelo STJ para um casal de gaúchas na semana passada (saiba mais aqui), aproveitamos para reproduzir um artigo de Luís Correa Lima, S.J., acerca da decisão do STF, em maio deste ano, a favor da união estável homoafetiva.
De agora em diante, a união homoafetiva é família no direito brasileiro. Esta é a decisão do Supremo Tribunal Federal, desde que sejam atendidos os requisitos exigidos para a formação da união estável entre homem e mulher. Os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis, estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Isto repercute na vida das pessoas e das instituições, encorajando a visibilização da condição homossexual.
Dentre os que se manifestaram contra esta decisão, está a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). A entidade considera a família monogâmica, fundada na união entre o homem e a mulher, como um princípio fundamental de direito natural. Equiparar as uniões entre pessoas do mesmo sexo à família, descaracterizaria a sua identidade e ameaçaria a estabilidade da mesma.
Pode parecer que o pronunciamento da CNBB apenas repete a histórica oposição da Igreja Católica ao movimento LGBT. Ao contrário do senso comum, existem elementos de convergência entre a decisão do Supremo e a doutrina da Igreja. Um documento do Vaticano, de 2003, trata do reconhecimento civil da união entre pessoas do mesmo sexo. Ele se opõe à equiparação desta forma de união àquela entre homem e mulher, bem como a mudanças no direito familiar neste sentido. No entanto, o Vaticano afirma que se podem reconhecer direitos decorrentes da convivência homossexual. Alguns bispos brasileiros se manifestaram individualmente a favor destes direitos, mas frisando que não se deve considerar a convivência homoafetiva como família.
Este passo é muito importante. Se não houver nenhum reconhecimento social ou proteção legal às uniões homoafetivas, a homofobia presente na sociedade vai pressionar os gays a contraírem uniões héteros, para fugirem de um preconceito que é muito forte. Isto já acontece há séculos, traz muito sofrimento e precisa parar. O sacramento do matrimônio nestas circunstâncias é inválido. É preciso que os fiéis saibam disto. O casamento tradicional não é, de modo algum, solução para a pessoa homossexual.
Convém recordar que a família tem mudado bastante ao longo da história. Na Antiguidade romana, ela era o conjunto das propriedades de alguém, incluindo escravos e parentes. Família vem de ‘famulus’, que significa escravo doméstico. No mundo bíblico, a mulher era propriedade do marido ou do pai, assim como a casa, o escravo e o jumento (Êxodo, 20). O casamento era um acordo entre chefes de família, prescindindo do consentimento dos cônjuges. O homem podia ter mais de uma esposa, e a função dela era gerar descendentes para a família do marido. Caso a esposa ficasse viúva e sem filhos, ela teria que se casar com o cunhado para cumprir esta função.
Por volta do século XII, a cristandade ocidental introduziu o consentimento conjugal como condição necessária para a validade do casamento. No Brasil colonial, a idade mínima para o casamento era de 12 anos para as mulheres e de 14 anos para os homens. Isto hoje é inadmissível. O modelo patriarcal de família declinou em todo o mundo no século passado. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, estabeleceu o livre consentimento dos cônjuges e também a igualdade de seus direitos no casamento. A Igreja Católica, desde o Concílio Vaticano II, louva as nações que promovem a igualdade de direitos do homem e da mulher na sociedade. A CNBB promoveu em 1990 uma Campanha da Fraternidade voltada para a igualdade de gênero, com o lema “mulher e homem: imagem de Deus”.
No longo prazo, portanto, é muito grande a mudança na configuração familiar e no papel de seus membros. Este processo continua. Na sociedade civil está se ressignificando o conceito de família, de modo a incluir as uniões homoafetivas. O casamento religioso, por sua vez, continua fortemente enraizado na heteronormatividade da tradição judaico-cristã. Mas em países escandinavos e em regiões onde as uniões homoafetivas são comuns, Igrejas como a Anglicana e a Luterana realizam bênçãos para estes conviventes, embora distinguindo estas uniões do casamento. As mudanças na tradição não são impossíveis de acontecer, trazendo novas compreensões e a aplicações da chamada lei natural. Mas é difícil saber o que vai permanecer, o que vai mudar e quanto tempo vai levar.
Uma nova questão vai surgir para as igrejas no Brasil: lidar com as crianças criadas por casais homoafetivos. O número delas deve aumentar devido ao crescente reconhecimento destas uniões. Os bispos católicos norte-americanos se depararam com esta questão em 2006. Eles se posicionaram contra a homoparentalidade. Mas aceitam que as crianças sejam batizadas desde que possam ser educadas na fé da Igreja. Convém considerar sempre o que for melhor para a criança.
- Luís Corrêa Lima
Padre jesuíta, historiador e professor da PUC-Rio.
Artigo publicado originalmente no site do CLAM (Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos), em 02-06-11. Tweet
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