sábado, 28 de dezembro de 2013

"Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância" (João 10,10)


Nosso querido amigo Pe. James Alison, teólogo e escritor, nos enviou este emocionante depoimento, com a concordância do seu autor, para compartilharmos com vocês (e, caso queira ler mais depoimentos, há uma série deles na tag "gay e cristão", aqui). Ao fim deste ano que foi tão rico, ler essa carta é, para nós, um testemunho de fé que nos anima e nos enche de esperança para nossa caminhada no ano que se inicia. Que venha 2014, e que traga bons frutos!


Caro James Alison, graça e paz!

Sou filho de uma família católica, um tanto conservadora, pois são ligados ao movimento carismático. Meu avô era homossexual, casou-se com minha avó a pedido dos seus pais que, praticamente, combinaram tudo e o jogaram para casar-se com uma mulher, pois não queriam um filho gay. Naquela época, tudo era bem mais difícil. Meus avós tiveram três filhas (dentre elas, obviamente, a minha mãe). Os anos se passaram e os casos extraconjugais do meu avô começaram a aparecer. Minha avó, (para evitar o que considerava “um escândalo”) pediu o divórcio, deixando-o com sua irmã. Pouco tempo depois, ele se suicidou ingerindo "chumbinho", veneno para ratos. E, assim, perdi o meu avô, homem de um coração gigantesco, mas que foi vítima de preconceitos internalizados historicamente.

Aos 12 anos, descobri que também sou gay. Sentia-me atraído por outros garotos. Não sabia muito bem lidar com a situação. Eu tinha medo, Padre Alison. Tinha medo da minha família, do que as pessoas iriam pensar, do fantasma que era a história do meu avô. Mesmo diante dos medos, lancei-me nas descobertas, nas aventuras dos primeiros relacionamentos. Eu era um adolescente descobrindo o mundo e a mim mesmo. Um ano depois, a minha família começou a descobrir. Os conflitos e dificuldades começaram a aparecer. Lembro-me, com clareza, do olhar desaprovador da minha avó para mim, suas palavras severas, seu medo diante daquilo que não compreendia. No olhar da minha avó, conseguia enxergar o pavor da repetição, era como se o mesmo caso do meu avô se repetisse em seu neto. Era como uma maldição! Pensei em me suicidar também. Sentia-me sujo, pecador, miserável. Minha família dizia que eu precisava rezar, confiar e pedir a Deus que me curasse, que expulsasse de mim o "demônio' da homossexualidade.

No dia 01 de maio de 2005, data do meu aniversário de 14 anos, aceitei - depois de muita insistência da minha avó - participar de um acampamento para jovens, que estava acontecendo no Centro de Evangelização de uma Nova Comunidade (dessas que são fruto da espiritualidade do movimento carismático). Lembro-me que, ao chegar lá, a multidão de jovens reunidos no local, a princípio me incomodou, pois era um dia quente e não havia mais lugares para sentar. Apesar de tudo, naquele dia, ao ouvir a pregação de um padre (palestrante do evento), senti-me tocado por Deus, amado por Ele. Uma revolução começou em minha vida. Ao final do dia, voltei para casa. Estava em lágrimas. Alguma coisa, que eu não sabia explicar, acontecia dentro de mim.

Depois daquela experiência, passei a frequentar assiduamente Grupos de Oração da Renovação Carismática Católica, acampamentos de oração para jovens, frequentar a missa e demais atividades da Igreja. Convenci-me de que havia descoberto a verdade, o caminho de uma salvação que me era garantida pela fé. Convenceram-me de que era preciso que eu me desligasse do mundo, das festas seculares e, principalmente, das "amizades que me conduziam ao mau caminho". Naquela época, eu tinha muitos amigos homossexuais. Perdi todos eles, pois me afastei de todos. Hoje, lamento profundamente as perdas afetivas desse período. Cada dia mais cultivava em mim e naqueles que estavam próximos uma espiritualidade desencarnada, afastada de tudo que fosse humano. Comecei a frequentar orações de cura, de libertação, nas quais acreditava que Deus me curaria e libertaria da homossexualidade. Conseguia me manter “fiel” a esses propósitos por um tempo, mas, vez ou outra, não resistia e acabava “ficando” (para usar a popular expressão tão comum entre os jovens) com alguém ou vendo algum material de teor pornográfico. O que me fazia ficar com a consciência pesada e, consequentemente, me entregar a penitências e mais orações de cura.

Aos dezesseis anos, após um processo de discernimento vocacional, decidi ingressar em uma Nova Comunidade de Vida Consagrada. Comunidade que também está ligada ao movimento carismático. Lá não foi diferente. Permaneci no solo moralista de minhas concepções fechadas, demonizando minha sexualidade e evitando tudo que me remetesse ao meu ser e estar no mundo. Dentro da comunidade optei pelo sacerdócio e, tendo meu pedido aceito, fui morar na casa dos seminaristas. Passei a conviver com um mundo diferente: o dos estudos filosóficos. A filosofia foi para mim uma alavanca de libertação. Sentia como se um martelo quebrasse – progressivamente - minhas convicções, dogmatismos e moralismos, fundados no solo conservador da Renovação Carismática. Sempre gostei de estudar, o mundo dos livros nunca me foi estranho ou desconhecido; talvez isso tenha contribuído no processo de “crise” (enfrentamento de si), em que adentrei logo no início da filosofia.

Fiz uma travessia intelectual. Foi minha segunda conversão. Certa vez, ao ler um texto de Henrique de Lima Vaz sobre Agostinho, descobri que na história do filósofo e doutor da Igreja aconteceu uma espécie de “itinerário de conversões filosóficas”. Ao olhar para minha história, também percebo isso. Minha mudança acarretou uma série de consequências, principalmente no ambiente eclesial em que me encontrava. Comecei a questionar os “tabus” (aquilo, para citar Freud, sobre o qual não se podia falar). Progressivamente, fui percebendo que na comunidade em que estava não conseguiria crescer como pessoa gay e como cristão católico, coisas que, a meu ver, estão interligadas indissoluvelmente. Pensar é atividade de risco em lugares fechados. Minhas leituras, em linguajar sartreano, eram como um “inferno” para mim. Revelavam-me o quão estranho eu era para mim mesmo, o quão desumano haviam sido meus últimos anos. Nesse período, arrisquei-me em algumas aventuras amorosas. A proibição, o tabu, o moralismo farisaico, instigavam-me a querer infringir, romper com a lei moral. Fiz isso algumas vezes, mas sabia que não podia permanecer em uma farsa, não suportava mais fugir de mim mesmo, negar o que eu era, ser reprodutor dos mesmos discursos dos quais outrora fora vítima. Não podia ser desonesto comigo, com minha fé, tampouco com os outros.

Na época, morava n’outro estado, um pouco distante do meu lugar de origem, e, deveria continuar os estudos filosóficos e teológicos lá. Todavia, a vida me preparou uma surpresa. Minha mãe caiu em uma terrível depressão, e os meus superiores acharam por bem que eu ficasse por perto. Fui transferido para a capital do estado em que vive minha família. Até hoje, eles vivem em uma cidadezinha a 70 km da capital. Lá dei continuidade ao curso de filosofia na Universidade Católica (onde lhe vi pela primeira vez, no Simpósio Internacional René Girard). Na Católica aconteceu minha terceira conversão. Conheci a Teologia da Libertação e entrei em uma estreita aproximação com os Jesuítas e com religiosos de outras congregações e ordens. Tudo era novo para mim. Eu que cresci em um cenário eclesial fortemente conservador, moralista e fechado, começava agora a conhecer horizontes novos, arejados por ventos eclesiais mais humanos. Conheci seminaristas com os quais podia conversar sobre a minha homossexualidade, partilhar minhas questões existenciais. Eu era o único seminarista de uma Nova Comunidade lá. Um ano depois, decidi fazer nova travessia. Como os discípulos, ao ouvir ressoar a palavra do Mestre, sentia que precisava lançar as redes de novo (Cf. Lucas 5,5). Foi no período em que conheci alguns frades de uma Ordem Religiosa. Era um grupo humano, de identidade marcada pela teologia da libertação, com um excelente trabalho no meio popular e no diálogo com a sociedade. Após um período de conhecimento e discernimento decidi sair da Nova Comunidade, em que até então estava, e ingressar no seminário dessa Ordem. E assim o fiz.

Hoje faz um ano que estou com eles. Não me arrependi da escolha. Continuo querendo ser padre. Continuo acreditando na Igreja. Mas, hoje, antes de ser padre, antes de ser religioso, quero ser uma boa pessoa, um bom ser humano. Não sei fazer isso de outro modo a não pelo da aceitação de minha condição homossexual. Esse ano, pela primeira vez, senti-me à vontade em partilhar com meu formador que eu sou gay. Ele é um ser humano fantástico, me acolheu e disse que era um sinal de maturidade humana reconhecer isso. O Grupo religioso em que estou é muito aberto nessa questão. Nós, formandos, conversamos sobre isso com naturalidade, não escondemos um do outro o que somos, independente de quem é hetero ou homossexual. Estou feliz! Sei que ainda tenho muito a crescer. Quero fazê-lo. Minha família continua não sabendo sobre minha condição, tenho vontade de assumir para eles, mas ainda tenho medo e não sei muito bem como fazer.

Hoje li um artigo seu. Você não sabe como ele foi importante para mim. “Um pequeno erro no começo torna-se muito maior ao final: rumos da discussão eclesial sobre a questão gay” [que publicamos aqui], uma conferência que você deu em um congresso de Teologia Moral. Foi a leitura desse artigo que me motivou a querer contar um pouco de minha história para você. É a primeira vez que narro a minha história de forma tão livre, tão leve, sem culpa. Gostaria de lhe pedir que rezasse por mim. Sinto como se sua história tivesse se cruzado com a minha, não sei como. Ao escrever isso, lágrimas correm no meu rosto. Também quero lhe pedir ajuda. Que me ajude nesse processo de honestidade, de aceitação; pois, como disse acima, poucos são os que sabem sobre mim. Eu não quero ser um religioso, um padre, um ser humano que vive na penumbra da mentira, sob o véu do mistério. Eu quero, antes de tudo, poder ser eu mesmo: filho de Deus, gay, cristão, humano.

Não sei se você chegará a ler essa carta. Mas, se por acaso chegar a ler, ficarei muito feliz e grato. Receba o meu abraço! Muito obrigado pela paciência em passar os olhos sobre essas letras que, juntas, revelam um pouco do que eu sou. Espero, um dia, poder te conhecer pessoalmente. Não somente lhe ver (como foi no Simpósio sobre o Girard), mas ter o prazer de lhe abraçar e agradecer pessoalmente pelo seu testemunho que tem curado tantas histórias, que ajudou e ajuda a curar a minha.

S.G.P.
Dezembro de 2013




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