Esperando que ainda em tempo, pela proximidade do dia de Todos os Santos, reproduzimos aqui um texto interessante sobre santidade, enviado por um dos membros do nosso grupo.
Sophia de Mello Breyner, naquele conto tão conhecido, «O retrato de Mónica», explica que a poesia é-nos dada uma vez e quando dizemos que não ela afasta-se. O amor é-nos dado algumas vezes, e também se o recusamos ele distancia-se de nós. Mas a santidade é-nos dada todos os dias como possibilidade. E se a recusamos teremos de a recusar todos os dias da nossa vida, porque quotidianamente a santidade se avizinha de nós como possibilidade.
Contudo, fizemos da santidade uma coisa tão extraordinária, abstrata e inalcançável, que quase não ousamos falar dela. De certa forma, habituamo-nos a olhar para a experiência cristã como que acontecendo a duas velocidades: o caminho heroico dos santos e a frágil estrada que é aquela de todos os outros, e por maior razão a nossa. Ora esta conceção de santidade não pode estar mais longe daquilo que a tradição cristã propõe. O Concílio Vaticano II, por exemplo, deixa bem claro: a santidade é vocação mais inclusiva e comum. Mas é preciso entender de que falamos quando falamos de santidade.
Bastar-nos-ia certamente ler as bem-aventuranças. Jesus não declara que os bem-aventurados são os outros, os que não estão ali. Jesus olha para a multidão e começa a dizer: “bem-aventurados vós os pobres”, “bem-aventurados vós os aflitos”, “bem-aventurados vós os misericordiosos”. Que quer isto dizer? Que são, no fundo, as nossas pobrezas, fragilidades, aflições, mansidões, procuras e sedes que dão a substância da bem-aventurança, a matéria da santidade. É naquilo que somos e fazemos, no mapa vulgaríssimo de quanto buscamos, na humilde e mesmo monótona geografia que nos situa, na pequena história que dia a dia protagonizamos que podemos ligar a terra e o céu. Falar de santidade em chave cristã passou a ser isso: acreditar que a humanidade do homem se tornou morada do divino de Deus.
Conta-se que um dia, uma dona de casa quis também criar uma seita, pois não estava disposta a deixar-se ficar atrás dos outros, assistindo ao quotidiano espetáculo da sua proliferação. E decidiu então começar uma seita em que ela e a sua empregada, eram, digamos, os “gurus” e os profetas daquela nova bolha. E, a verdade, é que aquilo começou a ter uma certa importância, e era sempre ela e a empregada, a empregada e ela... Passados uns tempos, vieram os jornalistas entrevistá-la. Escolheram, naturalmente, falar com a dona de casa... e inquiriram: “A senhora está contente?...” – “muito, estou muito contente com a igreja que eu fundei, mas olhem que eu já estou a pensar noutra!”.
- “Já está a pensar noutra?”
- “Sim, acho que tem de haver uma seita em que seja só eu profeta”.
Dizer “santificado seja o Vosso nome” é viver no inconformismo em relação às experiências de Deus que são claramente egóticas e insuficientes. É ter coragem, ter audácia de dizer: “Deus sê Deus em mim. Ensina-me a ser discípulo, fiel à escuta, à sugestão do Espírito, à aprendizagem da Palavra, disponível para as suas implicações históricas. O Teu Nome, ó Deus, é um “não Nome”; é um desafio para me colocar cada dia à escuta do Teu Nome. Que eu não me tranque por dentro num confortável reservatório de certezas, mas olhe com frescura os caminhos, esperados e inesperados, que Tu me apontas...”.
Em Toledo, está escrito à entrada de um mosteiro do século XII: “Não há caminhos, há que caminhar”. Dizer “santificado seja o Vosso nome” é, assim, aceitar sermos peregrinos do Nome de Deus... é tomar para si a condição de Abraão, a condição de todo o povo de Deus que foi peregrino do nome e do rosto de Deus, a condição de Jesus que «não tinha onde reclinar a cabeça», construindo uma história de santidade, e nada mais.
«Sede santos, porque Eu, o vosso Deus, sou santo» (Lv 11,45). O escritor Léon Bloy dizia: «Só há uma infelicidade, que é a de não sermos santos». E, contudo, como o testemunha Sophia de Mello Breyner, a santidade é-nos dada, como possibilidade real, em cada dia: «a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias». É como desafio a uma santidade vivida que também São Cipriano explica este segmento do Pater. Incita ele: «peçamos e imploramos para preservar naquilo que começamos a ser, uma vez santificados no batismo. E peçamos isto em cada dia, pois, de facto, em cada dia estamos necessitados de santificação…Peçamos para que permaneça em nós esta santificação».
A flor do mundo é a santidade. Essa forma de Deus presente em todos os tempos, em todas as latitudes, em todas as culturas. O que salva o mundo é a santidade: ela dá flexibilidade à dureza, torna uno o dividido, dá liberdade ao aprisionado, põe esperança nos corações abatidos, esconde o pão no regaço dos famintos, abraça-se à dor dos que choram e dança com outros a sua alegria. A santidade é um sulco invisível, mas torna tudo nítido em seu redor. A santidade é anónima e sem alarde. A santidade não é heroica: expressa-se no pequeno, no quotidiano, no usual. O pecado é a banalidade do mal. A santidade é a normalidade do bem. Como fica demonstrado neste poema de Maria de Lourdes Belchior:
«Hoje é dia de todos os santos: dos que têm auréola
e dos que não foram canonizados.
Dia de todos os santos: daqueles que viveram, serenos
e brandos, sem darem nas vistas e que no fim
dos tempos hão de seguir o Cordeiro.
Hoje é dia de todos os Santos: santos barbeiros e
santos cozinheiros, jogadores de football e porque
não? comerciantes, mercadores, caldeireiros e arrumadores (porque não arrumadoras? se até
é mais frequente que sejam elas a encaminhar o espectador?)
Ao longo dos séculos, no silêncio da noite e à
claridade do dia foram tuas testemunhas; disseram sim/sim e não/não; gastaram palavras,
poucas, em rodeios, divagações. Foram teus
imitadores e na transparência dos seus gestos a
Tua imagem se divisava. Empreendedores e bravos
ou tímidos e mansos, traziam-te no coração,
Olharam o mundo com amor e os
homens como irmãos.
Do chão que pisavam
rebentava a esperança de um futuro de justiça e de salvação
e o seu presente era já quase só amor.
Cortejo inumerável de homens e mulheres que Te
seguiram e contigo conviveram, de modo admirável:
com os que tinham fome partilharam o seu pão
olharam compadecidos as dores do
mundo e sofreram perseguição por causa da Justiça
Foram limpos de coração e por isso
dos seus olhos jorrou pureza e dos seus lábios
brotaram palavras de consolação.
Amaram-Te e amaram o mundo.
Cantaram os teus louvores e a beleza da Criação.
E choraram as dores dos que desesperam.
Tiveram gestos de indignação e palavras proféticas
que rasgavam horizontes límpidos.
Estes são os que seguem o Cordeiro
porque te conheceram e reconheceram e de ti receberam
o dom de anunciar ao mundo a justiça e a salvação»
Dizer “santificado seja o Vosso nome” é dizer a Deus: sê inteiro, não deixes que eu Te divida ou diminua, em função do meu egoísmo e dos meus humores... Sê como és, manifesta-Te em mim e na universalidade, manifesta-Te naquilo que é diferente e oposto a mim, naquilo que me contraria. Livra-me de ser um limite para o Teu amor. Que a Tua Santidade, ó Deus, seja uma estrela que caminha à nossa frente, a coluna de fogo que vai diante de nós, o assobio do pastor que nos serve de sinal… Na nossa humildade, somos a tenda onde Deus vai acampando no mundo, e cada dia vamos, num lugar diferente, num modo novo... Como escrevia Santo Agostinho: «A santificação do Nome de Deus é a nossa santificação». Os crentes não são gestores de uma empresa externa: são servidores e viajantes, nómadas e enamorados peregrinos, leitores e ouvintes, adoradores…
- José Tolentino Mendonça
In Pai-nosso que estais na terra, ed. Paulinas
Reproduzido via site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (Português)
Tweet
Nenhum comentário:
Postar um comentário