segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Desafios da nova religiosidade


No início do terceiro milênio a profecia secularista —avalizada por Weber e Durkheim— do declive e desaparecimento da religião e da fé não se cumpriu. Parece que estamos muito longe dela. Mas nem tudo continua da mesma maneira: a fé das grandes igrejas está dando passo a um tipo de religiosidade diferente, que acentua a individualização. E não só a individualização, assistimos a um fenômeno da fusão sincrética de diferentes horizontes religiosos: as pessoas, de maneira natural e na vida diária, misturam diferentes aspectos das religiões, gerando algo diferente, novo, às vezes com maior ou menor sentido.

As religiões, sobretudo as mais elaboradas, têm em si o germe da individuação. Nas grandes religiões se vê que há um processo da religião como vínculo, coesão e controle social, ao encontro pessoal e individual com a transcendência. O fundamental passa a ser a própria relação —caminho de iluminação ou salvação— que o sujeito estabelece com a divindade. No Ocidente, por exemplo, o cristianismo foi veículo de individuação, através da busca da relação pessoal com Deus (1). Desta maneira, diferentes movimentos e famílias espirituais, assim como místicos, foram acentuando a idéia de que cada um deve percorrer seu próprio caminho para chegar a Deus. Obviamente este processo não tem sido fácil, pois no tempo também tem ocorrido o movimento contrário: a exigência de viver a fé não a partir da própria individualidade, mas a partir da instituição e do que a sociedade exige.

Mas a importância do indivíduo não só ocorre no plano religioso. Na década de 1960 ocorre um ponto de inflexão —no sentido que se acentua e se torna mais visível, pelo menos no mundo Ocidental—, uma revolução individualizadora que gira sobre o eixo do cultivo do “eu” e da importância da «autenticidade» como paradigma e, também, como fenômeno de massas (2). E nos últimos anos foi dado mais um passo: a individualização da religião no sentido do “Deus pessoal”. A este Deus se adere de forma individual e não pelo mero influxo da sociedade. Pode-se nascer numa determinada tradição religiosa, mas depois o sujeito deve fazer sua própria escolha. A este respeito, Taylor assinala: “A vida ou a prática religiosa da qual eu faça parte não só deve ser o resultado de minha escolha, e sim que deve me dizer algo; deve fazer sentido dentro de meu desenvolvimento espiritual assim como eu o interpreto ” (3). Uma pessoa escolhe em que acreditar, e faz isso dentro de uma denominação histórica, dentro de uma fé. Mas não fica encerrado nela: essa fé deve ter sentido para o sujeito e ele deve gerar seu próprio credo (4).

Seguindo o pensamento de Ulrico Beck, podemos dizer que, diante da insegurança que supõe a radicalização dos processos modernizadores de nossa época —maior solidão pessoal, falta de referenciais valóricos, desarraigamento, sentimento de vazio, de falta de sentido, etc.—, a fé religiosa é vivida como um questionamento de certa modernidade desumanizadora e como apoio para viver com sentido transcendente à própria vida.

Beck toma como paradigma desta vivência a experiência de Etty Hillesum: no contexto do Holocausto, esta jovem de procedência judaica, mas formada num contexto laico, vai “descobrindo” a transcendência e Deus num ambiente cheio de dor, maldade, injustiça e morte. Com completo realismo —sem tornar a religião uma forma de fuga—, Hillesum vive um encontro místico de unidade com Deus muito além do marco de uma fé determinada. De alguma maneira, a experiência dela tem um pouco de paradigmática na vivência da religião atual, pois refere-se ao Deus pessoal, ao encontro espiritual muito além de um credo ou de um dogma.

Na vivência atual a religião não desaparece, mas sim sofre um processo de transformação que implica uma fé de índole mais subjetivista cujos conteúdos dogmáticos —utilizando terminologia tradicional— e estruturas teológicas são difusos. Dessa maneira, vê-se como convivem numa só fé propostas que em religiões tradicionais são contrárias, tais como a crença na ressurreição e na reencarnação. A unidade entre religião e crença se rompe, ocorre uma separação entre o que se propõe em nível institucional e o que se crê e vive no plano pessoal. Este ponto é, obviamente, produto da modernidade: o triunfo do pensamento do indivíduo que se pergunta, questiona e propõe.

O processo de individualização e desdogmatização das religiões traz também algumas conseqüências negativas, entre as quais se destaca certa tendência à banalização e vulgarização da religião, provocando  uma espécie de “supermercado das religiões” onde cada qual escolhe o que mais lhe agrada ou acomoda. Outra conseqüência é a destradicionalização. Isto significa que a religião coletiva vai-se desintegrando: os ritos litúrgicos, a moral, as práticas piedosas, a aceitação dos dogmas, etc., vão-se esvaindo pouco a pouco.

Uma das reações diante da individualização e da destradicionalização é o surgimento de certos grupos integristas que se definem e se compreendem a partir de um credo e do conflito com a modernidade (5), percebendo-se como verdadeiramente fiéis a Deus e a sua mensagem. Por último, também há algumas dificuldades no forte acento no que se sente e se percebe, junto com o excesso de emotivismo, que é explorado por alguns grupos religiosos, ou pseudoreligiosos, que às vezes tendem a reduzir a relação com a transcendência a uma mera experiência emocional e centrada somente no pessoal.

Ao pensar nas características atuais da religião —individuação, desdogmatização, etc.—, constata-se que se tornou pessoal, mas não privada , pelo contrário, foi desprivatizada. O que significa isso? As diferentes teorias de secularização entenderam que no mundo moderno as religiões deveriam passar a um estado de “privatização”. Isto implica, pelo menos, dois aspectos: o primeiro é que na modernidade a religião deve sair da esfera pública, exigindo-se a separação de Igreja e Estado e também procurando “isolar” as razões religiosas para deixar em pé somente as razões laicas. De alguma maneira, é um convite para atuar, na esfera pública, como se “Deus não existisse” (6). O segundo, faz referência a entender a religião como um tema estritamente privado, que corresponde à vida íntima do sujeito. Aqui se aponta à idéia da liberdade de consciência: liberdade para crer —ou não crer— no que quiser e vivê-lo no âmbito pessoal sem ter que ser questionado por isso. Deste modo, a religião é forçada a permanecer no âmbito da esfera privada.

O que a desprivatização faz é questionar este princípio, mas não no tema da liberdade de consciência, e sim no lugar que corresponde às religiões no mundo moderno. Nos últimos anos — pelo menos 20 anos— pode-se apreciar um sustentado processo de — se for permitido o uso do vocábulo — reaparecimento do religioso na esfera pública. Em várias partes do mundo se pode apreciar como as religiões entram na arena pública e política para, por um lado, proteger seus próprios interesses tradicionais e, por outro, para entrar em diferentes lutas para exigir justiça, liberdade, respeito pelos oprimidos, etc. (7).

Embora muitos não estejam de acordo com esta nova situação, a única condição pedida às religiões para entrar na esfera pública é que assumam e respeitem a condição do princípio da liberdade de consciência. Isto significa, de maneira prática, a não imposição de suas posturas ao resto da sociedade.

Tendo aceitado a condição previamente assinalada, teria pelo menos três situações que justificariam a intervenção, ou desprivatização, das religiões no âmbito público (8): a primeira é aquela em que a religião entra na esfera pública para defender não somente sua própria liberdade religiosa —como sucedeu em certos regimes ditatoriais—, e sim também as liberdades e direitos que surgiram na modernidade, tais como os Direitos Humanos, o direito à informação, a democracia, etc. Exemplo deste exercício se pode encontrar em ditaduras de cunho comunista, como foi o caso de Polônia; ou ditaduras baseadas na doutrina da Segurança Nacional como foi o caso da ditadura de Pinochet no Chile. Nestes casos —e em muitos outros— o papel da religião, especificamente através da Igreja Católica, foi a promoção dos Direitos Humanos, a liberdade de informação, a exigência do respeito pela justiça e a volta ao regime democrático.

A segunda situação de desprivatização da religião ocorre quando esta entra na esfera pública para questionar e ir contra certas leis, derivadas da autonomia secular, que pareceriam ir contra certos princípios básicos de moralidade e justiça. Aqui se podem pôr como exemplo as cartas pastorais dos bispos dos Estados Unidos, condenando situações de injustiça tais como a corrida armamentista, ou as injustiças derivadas das políticas e leis de imigração por considerá-las abertamente injustas; ou a declaração feita em 2009 pela Conferência Episcopal Suíça, que condenou o resultado do plebiscito que proíbe a construção de minaretes nas cidades da nação helvética.

A terceira instância ou situação em que as religiões intervêm na esfera pública, tem a ver com a busca de proteção de formas tradicionais de vida que se vêem ameaçadas por decisões políticas, administrativas ou judiciais. Neste caso se abre o debate público sobre a moralidade do aborto, a eutanásia ou o direito ao casamento homossexual.

Como se pode comprovar, a participação da religião em cada uma destas situações é diferente. Na primeira situação a religião participa no prosseguimento de valores modernos como a liberdade, a democracia, etc. São valores liberais e que geram a construção de uma ordem social baseada nestes princípios. A segunda e terceira situação, em compensação, manifestam os limites do sistema liberal político e como o discurso religioso pode ajudar a abrir —e também a fechar— novos horizontes.

Por último, também chama a atenção como ocorre uma aproximação ao tema religiosos a partir do âmbito político . Um exemplo disto é o discurso pronunciado pelo presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, na Universidade do Cairo em 4 de junho de 2009. Ali Obama reconhece a tensão das relações existentes entre o Oriente e o Ocidente, entre o mundo árabe e os EUA, sabendo que pequenos grupos integristas são os que deixaram o diálogo como opção e se empenharam em agudizar o conflito através do terrorismo. Diante disso, Obama faz um chamado para fazer o esforço contínuo de aprender a escutar, para serem capazes de aprender do outro. O caminho para esta aprendizagem é reconhecer os valores de ambas culturas, o que temos em comum, porque Deus nos deu: “compartilhamos aspirações: viver em paz e segurança; adquirir uma educação e trabalhar com dignidade; amar nossas famílias, nossas comunidades e nosso Deus. Compartilhamos tudo isto. Esta é a esperança da humanidade” (9).

Se Obama não for ingênuo, seu discurso reconhece as dificuldades entre as diversas culturas e países; pede para respeitar os direitos das mulheres —que em algumas partes do mundo árabe são pouco respeitados— e também para promover e respeitar a liberdade religiosa. Mas, com o mencionado anteriormente, vê no diálogo interreligioso uma possibilidade enorme de superar as diferenças e tentar a conciliação de dois mundos inicialmente tão opostos. A religião, antes de dividir e levar ao conflito, pode levar ao encontro.

Outro exemplo deste ponto ocorreu na França, um dos países com maior tradição laica do mundo. Em setembro de 2008, durante a visita do Papa Bento XVI, o presidente Nicolás Sarkozy declarou: “Privar-se das religiões seria uma loucura, uma falta contra a cultura, contra o pensamento” (10). Para logo depois acrescentar: “O laicismo positivo, o laicismo aberto é um convite ao diálogo, à tolerância, ao respeito. É uma oportunidade, um impulso, uma dimensão suplementar proposta ao debate público”.

Na recente visita do Papa Bento XVI ao Reino Unido — precedida por uma forte campanha contra — o primeiro-ministro, David Cameron, agradeceu o Pontífice que tenha posto a questão da fé “no centro do debate nacional” (11). Estas palavras são em resposta ao que foi dito pelo Papa, ao manifestar sua preocupação pela crescente marginalização da religião, especialmente do cristianismo, no debate social público; esquecendo que a religião não é um problema, e sim que pode ser uma contribuição à sociedade (12).

A desprivatização das religiões está tornando-se realidade. Isto levanta, pelo menos, duas perguntas essenciais: as religiões e o laicismo serão capazes de gerar um diálogo produtivo entre eles, onde as religiões não caiam no dogmatismo e o laicismo aprenda a escutar e valorizar as razões religiosas? Mas, por outro lado, também surge a pergunta se as instituições religiosas, as igrejas, serão capazes de gerar maneiras novas e criativas de encontro com os crentes.

- Ignacio Sepúlveda del Río
Reproduzido via Amai-vos, com grifos nossos

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(1) O cristianismo tem em si um paradoxo curioso: é uma religião comunitária, tendente sempre ao universal, mas também precisa e se move na escolha particular do indivíduo, pois o cristianismo exige a declaração livre e individual para aderir-se a ele. É o movimento que se vê em Mt 25, onde o Juízo é universal, mas também individual.

(2) Aqui podemos observar a juventude: todos querem ser diferentes, diferentes, únicos, coisa que é um grande valor. A indústria, seja de roupa, música, livros, etc., aponta para este mercado com a mensagem insistente de “ser único”, “ser diferente”. No final, como grande paradoxo, o ser único e diferente se torna um fenômeno de massas. Os que são diferentes e únicos terminam vestindo à moda ditada por algum desenhista da moda.

(3) Taylor, Ch., Las variedades de la religión, hoy, Paidós, Barcelona, 2003, p. 104.

(4) Isto tem as ressonâncias do tradicional “crio a minha maneira”, mas é inegável que muito pouca gente –cada dia menos– adere à totalidade de dogmas, ou crenças, de uma religião.

(5) Em seus discursos se enfatiza “os valores verdadeiros”, “ respeitar a moral”, “ a verdade”, etc.

(6) Esta proposta deve ser considerada com mesura, pois muitas vezes entre as “razões de Estado” também se invocaram “razões divinas”. Um claro exemplo disto ocorre nos Estados Unidos.

(7) Aqui se pode considerar todas as lutas a favor dos Direitos Humanos em diferentes partes do mundo, a proteção dos direitos dos povos originários na América Latina, ou a defesa e o trabalho a favor dos imigrantes na Europa.

(8) Cf. Casanova, J., Public Religions in the Modern World, The University of Chicago Press, Chicago and London, 1994.

(9) ABC

(10) El Mundo

(11) El País

(12) Discurso de Bento XVI

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