Foto: Frauke Thielking
Paul Thibaud, presidente católico da Fraternidade Judaico-Cristã da França e ex-diretor da revista Esprit, em artigo para o jornal La Croix, 05-05-2009, comenta que "a Igreja parece incapaz, em tais situações, de desempenhar o papel de conselheira compreensiva, de ser um diapasão, em vez de querer dirigir a orquestra".
Segundo Thibaud, é preciso libertar o cristianismo da idolatria da doutrina para que ele tenha um futuro. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.
Eis o artigo.
Às vezes, somos tentados a assumir a defesa do papa e do Vaticano contra a ideologia contemporânea. Irritamo-nos com o utilitarismo ingênuo que tem como dever moral satisfazer todas as demandas, ou com a ilusão de que se poderia, sem esforço algum, fugir do mal. Mas, por mais superficial que seja, a boa vontade de compaixão que assim se expressa é irrecusável. Esse mundo precisa, por parte do cristianismo, de um acompanhamento crítico* e não de advertências a uma ordem supostamente imutável.
Mas a Igreja parece incapaz, em tais situações, de desempenhar o papel de conselheira compreensiva, de ser um diapasão, em vez de querer dirigir a orquestra. As atitudes da hierarquia que recentemente estupidificaram e indignaram expressam uma ideia de si própria e da sua competência pela qual a Igreja se marginaliza.
Diante de uma humanidade empenhada em um processo de autoinvenção, ao mesmo tempo inebriante e inquietante, a instituição católica afirma que sabe a priori o que é humano e o que não é, e acredita que não tem nada a aprender do exterior. O cardeal Castrillón mostra aonde essa suficiência pode levar, para o qual a irregularidade de uma ordenação [caso dos lefebvrianos] importa mais do que a vontade de negar o maior crime do século XX [negação do Holocausto por dom Williamson], negação que, segundo ele, não é uma culpa moral, mas uma opinião sobre um "problema histórico".
Nisso, como se disse,** estamos muito distantes do Vaticano II e da pastoral compreensiva dos "sinais dos tempos" então anunciada. Mas por que, depois do Concílio, falhamos ao efetuar com a sociedade democrática a relação positiva preconizada? Parece que o motivo está no fato de que o Concílio ficou prisioneiro de ideias poucos consistentes (o muito celebrado "aggiornamento") sobre conciliação que se acreditava que fosse fácil, ou até mesmo natural, entre cristianismo e democracia.
No seu desenvolvimento posterior, a democracia desiludiu essas esperanças. Ela mesma se radicalizou ao ponto de se entregar a uma artificialidade técnica e jurídica que parece ameaçar a humanidade do ser humano. Mas justamente por essa razão – porque se pode temer que a humanidade, não querendo conhecer que os desejos do indivíduo, sacrifique o próprio futuro como espécie para satisfazer as demandas atuais – forma-se uma zona de inquietude em que uma modernidade capaz de duvidar de si mesma pode encontrar um ensinamento evangélico que leve à vida verdadeira, à vida reconciliada com o Criador.
Ao invés de dar atenção a essa zona de vulnerabilidade, a Igreja, diante da dificuldade da conciliação, se debruça sobre aquilo que o Concílio não interrogou, a relação entre identidade da instituição e o que ela considera como as verdades das quais tem a custódia, o seu patrimônio dogmático. A partir dessa identidade dogmática, baseando-se nela, a Igreja desenvolve um discurso apodítico (é verdade porque eu o digo!) sobre a natureza humana ou, em uma linguagem mais moderna, sobre o "limite", oposto imperturbavelmente a um mundo do qual se tem mais medo do que atenção e cuidado. Natureza e limite, hoje, não são meios para interrogar certas práticas, mas evocam um saber determinado antecipadamente, uma experiência em humanidade que nos é concedida a priori.
Esse fechamento na doutrina endurece a mente e o coração, constitui uma barreira, como uma tela impermeável, que impede que o espírito dos Evangelhos penetre: o juízo suspenso até o fim dos tempos, as parábolas que mostram Jesus atento à experiência humana. Em certo modo, o perigo de um cristianismo fascinado pela ideia do saber exaustivo foi identificado pelo próprio Bento XVI no discurso de Regensburg. Entre a fé e a razão, o Papa mostra o perigo de concluir a síntese: então "a fé já não se apresenta como palavra histórica viva, mas como elemento inserido na estrutura de um sistema filosófico". Aparentemente, é no âmbito da doutrina moral que, em grande parte, essa tendência a "cimentar" a aliança da fé e da razão triunfa hoje.
Por que, então, malgrado as boas intenções, conciliares e pós-conciliares, a Igreja recai, quase naturalmente, no trilho do saber absoluto, do magistério peremptório e surdo? A emancipação moderna torna essa pergunta incontornável. Temos a tendência de nos alegrarmos por isso e dizer: finalmente!
Mas o esforço para sair do trilho é árduo, porque prolonga uma maneira cristã muito antiga de dominar o tempo, apropriando-se da história passada e desvalorizando a história em curso. No que se refere ao passado, acreditou-se que a potencialidade do judaísmo fosse completamente identificada e realizada no cristianismo. Por outro lado, a tendência foi a de considerar insignificante o que a criatividade humana podia produzir depois de Jesus Cristo.
Assim, o cristianismo se estabeleceu no maior dos paradoxos: a Encarnação em que São Paulo previa o rebaixamento daquele que era "de condição divina" foi interpretada como uma tomada de poder direta de Deus no mundo, poder que era herdado pela Igreja. A idolatria da doutrina é o prolongamento dessa pretensão desmesurada (aquela de já ter levado a humanidade a cumprimento, essencialmente, e de ter reduzido à insignificância a história que continua). É preciso libertar o cristianismo para que ele tenha um futuro.
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* O termo é de Charles Taylor em "A secular Age" (nota do autor).
** Cf Claude Dagens, "Souffrir pour l'Église et par l'Église", La Croix, 12-03-2009 (nota do autor). Tweet
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