Foto: Alexander Safonov
Há alguns anos diversos líderes cristãos têm atacado violentamente o projeto de lei 122/06, que criminaliza a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, alegando que o mesmo viola a liberdade religiosa, uma vez que acreditam como profissão de fé o direito a condenarem homossexuais ao inferno. A alegação se constrói a partir de alguns equívocos que pretendo aqui destacar.
O primeiro deles é a liberdade de expressão acima de qualquer valor humanitário. O rito religioso está resguardado pela Constituição de modo que o Estado não pode ter qualquer ingerência sobre o mesmo. Contudo, essa liberdade religiosa não pode ser usada para agredir, condenar ou atacar quaisquer grupos sociais. Assim como a religião cristã não pode produzir discursos discriminatórios sobre outras religiões, o que configuraria intolerância religiosa e infringiria a Carta Magna, também a liberdade de expressão não pode violar a imagem, a vida privada e a honra da pessoa humana - determinação presente no inciso X do artigo 5º da Constituição Federal.
Outro equívoco é a dissociação que eles fazem entre os discursos proferidos contra a homossexualidade e as inúmeras violências físicas e verbais contra a população LGBT. Para diversos padres e pastores, condenar a homossexualidade não significa atacar o homossexual. Essa dissociação entre prática e essência é um mero recurso discursivo para não se responsabilizarem com as violências homofóbicas praticadas no Brasil. A não ser em casos de distúrbios bipolares, essa divisão entre essência e prática é injustificável e não tem sustentação na realidade. Ao atacarem as práticas homossexuais, esses líderes violam o inciso X do artigo 5º da Constituição Federal, isto é, violam a imagem, a honra e a vida privada da população LGBT, pois atacam a essência das pessoas que vivenciam a homossexualidade. Esses discursos ofensivos têm efeito direto sobre as práticas de violência homofóbica.
Estudiosos sobre Análise de Discurso, mais especificamente sobre a Filosofia da Linguagem, têm apontado a relação direta entre o dizer e o fazer. Para eles, o discurso tem caráter performativo, pois, ao serem enunciados, resultam em ação. Logo, toda ação humana é motivada por discursos que a legitima e lhe dão materialidade. As agressões praticadas contra a população LGBT não resultam apenas de uma decisão subjetiva, elas são legitimadas por discursos institucionais, como os discursos religiosos, educacionais, jurídicos, médicos e outros, os quais, ao tratarem a homossexualidade como pecado ou anormalidade, autorizam a prática da violência homofóbica. Desse modo, a homofobia não é apenas um comportamento individual, mas principalmente cognitivo, isto é, como afirma Daniel Borrilo, as práticas segregacionistas contra LGBTs, que vão desde a privação de direitos legais até os discursos condenatórios, são os verdadeiros motivadores que determinam a homofobia psicológica (individual).
Qualificar o PLC 122 de “mordaça gay”, alegando que o mesmo ataca a liberdade de expressão e a liberdade religiosa é escamotear e distorcer a face cruel da intolerância. O perfil violento do discurso não é apontado apenas por analistas do discurso, mas também pelo texto bíblico, na epístola de Tiago, no capítulo 3, ao observar o poder que a língua (o discurso) tem para provocar o mal: "Assim também a língua é um pequeno membro, e gloria-se de grandes coisas. Vede quão grande bosque um pequeno fogo incendeia. A língua também é um fogo; como mundo de iniqüidade, a língua está posta entre os nossos membros, e contamina todo o corpo, e inflama o curso da natureza, e é inflamada pelo inferno. Com ela bendizemos a Deus e Pai, e com ela amaldiçoamos os homens feitos à semelhança de Deus. De uma mesma boca procede benção e maldição".
Por isso, o apóstolo sugere aos cristãos que ponham um freio na língua. Se o fundamentalismo religioso tem, mesmo antes da Reforma Religiosa, produzido discursos de intolerância e, com isso, incitado violências que causaram milhares de mortes absurdas, logo se vê que as Instituições Cristãs são incapazes de por em si mesma um freio na língua. Com desculpas de que falam e nome de Deus, as instituições religiosas apoiaram a colonização e a escravidão, praticando um vergonhoso genocídio contra os povos indígenas e africanos, o nazismo, assassinando milhares de judeus, o patriarcado, violentando e assassinando milhares de mulheres e, agora, apóiam e praticam a condenação e a violação de direitos da população LGBT. Nesse sentido, o Estado, como Estado Laico, deve colocar freio na língua de todos que promovem discursos de intolerância homofóbica para que a prática genocida feita pelas Instituições Cristãs ao longo da história não venha se repetir. Desse modo, o PLC 122 não é uma mordaça gay, mas um freio na língua da intolerância. Reivindicar a liberdade de condenar as práticas homossexuais e, consequentemente, condenar homossexuais à violência, (que já é em si uma violência), é reivindicar privilégios inconstitucionais.
Como determina a Constituição Federal, o Estado não pode interferir no rito religioso, o qual deve estar circunscrito a esse espaço. Do mesmo modo, as Igrejas não podem praticar a ingerência sobre o Estado, impedindo que o mesmo garanta o cumprimento da Constituição Federal a toda sociedade. Para tanto, a única forma de se garantir a laicidade do Estado e impedir a ingerência religiosa sobre a sociedade é a aprovação do PLC 122, colocando um freio na língua de todos que incitam a prática da homofobia.
- Dário Neto
Membro do Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual de São Paulo e doutorando em Literatura Brasileira pela USP
Reproduzido via Caros Amigos, 18/08/2011, com grifos nossos Tweet
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