terça-feira, 12 de julho de 2011

Os indignados da Igreja

Foto: Christopher Drummond

“Eu não sei em virtude de quê argumento o bispo de Roma se vê no direito de convocar concentrações “mundiais”. Será que ele é o bispo do mundo inteiro?”, pergunta indignado o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado no seu blog Teología Sin Censura, 05-07-2011. A tradução é do Cepat, aqui reproduzida via IHU com grifos nossos.

Eis o artigo.


Em agosto próximo, o Papa virá novamente a Madri, para presidir a solene e cara Jornada Mundial da Juventude (JMJ). De saída, digo que compreendo aqueles que estão na organização deste evento. E entendo aqueles que veem nele um meio eficaz para revitalizar a fé de muitas pessoas que, neste tipo de ato, se consolidam nas suas crenças ou as propagam a outros que delas duvidam. O que não posso admitir é que a JMJ possa ser utilizada para fazer turismo ou – o que não me atrevo a pensar – que haja quem utilize o Vigário de Cristo para subir, ter mais fama, ganhar dinheiro ou coisas do gênero. Haverá quem possa chegar a semelhantes sem-vergonhices? Por respeito a Deus, que ninguém faça isso, nem dê ocasião para que se possa pensar coisas tão desonestas!

Estas desonestidades – algumas vezes suspeitas e, em outras, claramente comprovadas – explicam o descontentamento e os protestos dos indignados. Aqueles das praças públicas, que clamam contra um sistema (econômico e político) canalha. E aqueles das portas das catedrais, que logo vão começar a concentrar pessoas que buscam Jesus Cristo nos templos e nos templos não o encontram. Será que vão encontrá-lo na JMJ?

Prescindindo do que cada um sente ou possa sentir, a minha pergunta procura ir mais ao fundo das coisas. Os “homens da Igreja” sempre gostaram mais dos grandes espaços, das grandes concentrações, dos grandes edifícios, dos palácios, das vestimentas solenes, das manifestações mais pomposamente midiáticas... Evidentemente, em tudo isso, alguns clérigos viram a vitória de Cristo. E, emocionados com a vitória “divina”, não prestaram a devida atenção ao sucesso “humano”, que é o que muitos, de fato, conseguiram.

Mas, o fundo da questão, que é o que nos teria que preocupar, está em outra coisa. Vou dizê-lo diretamente e sem melindres. Eu não sei em virtude de quê argumento o bispo de Roma se vê no direito de convocar concentrações “mundiais”. Será que ele é o bispo do mundo inteiro? Eu sei que esta pergunta surpreende, escandaliza, irrita. Mas é preciso fazê-la. Porque quando todo este assunto é analisado de perto, a gente se dá conta de que aqui há coisas que não se enquadram, por mais que sejam vistas como as mais naturais do mundo.

No cânon 331 do Código de Direito Canônico se diz que a potestade do Papa é “suprema, plena, imediata e universal”, como Pastor que é da “Igreja universal na terra”. Além disso, é uma potestade contra a qual “não cabe apelação nem recurso” algum (c. 333, 3). Ou seja, o Papa não tem que dar contas a ninguém do que diz ou do que faz. Mas o Papa realmente tem esse poder? Faço esta pergunta porque está mais do que demonstrado que nos Evangelhos não existe nenhum argumento que prove que o bispo de Roma tenha tido ou tenha essa potestade. Além disso, está igualmente demonstrado que o poder supremo universal do papado não tem origem apostólica, mas imperial, de forma que a bibliografia muito documentada que existe sobre este ponto concreto é enorme. Segundo os minuciosos e detalhados estudos que foram feitos sobre esta questão, a “potestade universal” foi uma invenção dos imperadores de Roma. No século IV, de Roma passou para Constantinopla, ao Império Bizantino. E dali, não sem forte resistência dos papas, finalmente, em 1049, Leão IX a apropriou para a sede romana. Mas antes, o Papa Gregório Magno (séculos VI-VII) chegou a dizer que utilizar o título de patriarca “universal” era uma “blasfêmia” (Mon. Germ. Hist., Epist. V, 37).

Acontece que o mesmo título que, para um papa foi blasfêmia, para outro é motivo justificador a partir do qual se organiza uma jornada “mundial” (universal?). Não trago aqui estas coisas para cuspir erudição. Digo tudo isto – e o digo assim – para que pensemos, todos, no que estamos fazendo. E no que deixamos de fazer, calados, resignados, diante de coisas muito graves que estamos vendo e vivendo. Como é possível que em um país, no qual milhares de pessoas se lançam às ruas pedindo uma democracia mais participativa, se receba oficialmente, se ovacione e se aplauda o Chefe de Estado da última monarquia absoluta que resta na Europa? Que explicação existe quando clamamos pela defesa dos nossos direitos fundamentais, nos colocamos a organizar o ato mais solene de exaltação ao detentor do poder supremo de uma instituição religiosa, a Igreja, que não reconhece a igualdade de direitos de todos os seus membros e se permite exaltar alguns, ao mesmo tempo que humilha outros? Por que toleramos estas e tantas outras pessoas de boa vontade e que empurram outros a negar a Deus e a se esquecer da religião? Por que permitimos que uma determinada Igreja se beneficie tanto que, em vez de nos unir, nos divide, nos confronta e nos prejudica em nossa convivência cívica?

Por estes dias, muita gente está falando do dinheiro que a visita do Papa a Madri vai custar. Não entro nesse assunto porque me parece que não é a questão mais grave que vai acontecer por ocasião desta visita. A questão é muito mais séria. O que a JMJ vai por em evidência é o cúmulo de contradições em que a Igreja vive. E as contradições que vivem todos aqueles que vemos nela a instituição que nos transmitiu a lembrança viva do Evangelho e, ao mesmo tempo, a dificuldade mais séria para que essa lembrança se torne vida em nós. Por isso, não queremos continuar a ser cúmplices deste estado de coisas.

Já entramos em cheio na dispersão do verão e, portanto, não sei se este é o momento de se colocar a organizar um projeto e um programa que, a partir da fé em Jesus e seu Evangelho, nos leva a planejar seriamente como podemos e devemos expressar as exigências dessa fé no Senhor Jesus. Sem dúvida alguma, uma das coisas mais sérias que podemos fazer nestas semanas de descanso é programar um novo curso no qual podemos seguir sendo os mesmos e no qual não nos é permitido continuar vivendo em uma simplicidade que é autêntica cumplicidade com o que já é simplesmente intolerável. Porque está nos prejudicando gravemente a todos.

- José Maria Castillo, teólogo espanhol

* * *

Claro que o artigo acima, no blog de Castillo, provocou reações inflamadas, às quais ele respondeu no dia sequinte, aqui.

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