domingo, 2 de outubro de 2011

Na rica Alemanha, a Igreja se faz pobre

Foto via eu, complexo

Nunca antes de sua terceira viagem à sua pátria, Bento XVI havia dado uma preeminência tão forte ao ideal de uma Igreja pobre de estruturas, de riquezas e de poder. Mas ao mesmo tempo insistiu também no dever de uma vigorosa “presença pública” desta mesma Igreja. As duas coisas juntas são possíveis?

A reportagem é de Sandro Magister e está publicada no sítio Chiesa, 28-09-2011. A tradução é do Cepat, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.


O impacto da terceira viagem de Bento XVI à Alemanha, como aconteceu anteriormente com outras viagens suas, dissipou também desta vez as nuvens que haviam obscurecido os dias prévios à visita.

As críticas, inclusive as mais hostis, foram compensadas por numerosas manifestações favoráveis, e isso numa atmosfera de simpatia generalizado.

O discurso no Parlamento, na quinta-feira, 22 de setembro, tornou possível que se preste imediatamente uma respeitosa atenção ao pensamento do papa Joseph Ratzinger sobre os fundamentos naturais e racionais do Estado liberal: uma natureza e uma razão animadas pelo Espírito criador de Deus.

Com a aula de Regensburg, em 2006, e com aquela pronunciada no Colégio dos Bernardinos, de Paris, em 2008, esta de 2011 em Berlim confirmou uma trilogia que coloca de manifesto todo o pontificado de Bento XVI, centrado no vínculo fecundo entre a Jerusalém da revelação divina, a Atenas da razão filosófica e a Roma do pensamento jurídico, e centrado também em uma releitura original e positiva dos valores do Iluminismo.

Outro momento forte da viagem de Bento XVI à Alemanha foi seu encontro em Erfurt com as Igrejas nascidas da reforma luterana.

Quanto a Martinho Lutero, o Papa não recordou as ações de ruptura com a Igreja de Roma, mas sua dramática e incessante busca de um Deus capaz de misericórdia para com uma humanidade profundamente marcada pelo mal e pelo pecado.

“A candente pergunta de Lutero deve converter-se novamente na nossa pergunta”, disse Bento XVI. Deste modo, traçou um caminho ecumênico que não é uma tática de negociação a curto prazo, nem enfraquecimento da fé para aproximá-la do mundo, mas recuperação das questões essenciais do cristianismo, as únicas pelas quais as Igrejas têm razão de ser e de falar juntos aos homens.

* * *

Mas os discursos de Bento XVI que mais discussão provocarão são, talvez, aqueles que ele dirigiu aos católicos da Alemanha e, através deles, ao conjunto do catolicismo do Ocidente.

Na Alemanha marcada, não apenas entre os protestantes, mas também entre os católicos, por persistentes sentimentos antirromanos e por pressões recorrentes para efetuar reformas disciplinares e práticas, como a abolição do celibato do clero, o sacerdócio para as mulheres, a comunhão para os casais de segunda união, a eleição “democrática” dos bispos, Bento XVI não fez concessões, nem sequer as citou, mas obrigou a todos, inclusive seus defensores, a considerar a gravidade do que está em jogo.

A Igreja católica alemã – fez notar o Papa – é uma potência “organizada de forma ótima”. Também as reformas continuamente solicitadas pertencem a este âmbito estrutural. “Mas, por trás das estruturas – perguntou o Papa – há uma força espiritual correspondente, a força da fé no Deus vivo?”.

Para Bento XVI “há um desnível entre as estruturas e o Espírito”. Porque “a verdadeira crise da Igreja no mundo ocidental é uma crise de fé”. Consequentemente, “se não chegarmos a uma verdadeira renovação na fé, qualquer reforma estrutural será ineficaz”.

Aqui o Papa está falando aos dirigentes do Comitê Central dos Católicos Alemães, mas disse coisas afins também na homilia da Missa celebrada em Friburgo, no domingo 25 de setembro, e no encontro posterior com os católicos “engajados na Igreja e na sociedade”.

Em vez de reformas de instituições e de estruturas, que para ele seria um estéril acomodamento da Igreja ao mundo, Bento XVI pregou uma reforma interior, espiritual, centrada no supremo “escândalo” da Cruz, escândalo “que não pode ser suprimido se não se quiser anular o cristianismo”: escândalo, infelizmente, “ensombrecido recentemente pelos dolorosos escândalos dos anunciadores da fé” e que se tornaram culpados pelos abusos sexuais perpetrados contra menores.

O Papa precaveu contra uma fé exclusivamente individual, fechada sobre si mesma. Insistiu sobre o vínculo indissolúvel que une todo cristão ao outro na Igreja universal.

Mas também anunciou um futuro, na Alemanha e no Ocidente, feito não por grandes massas de fiéis, mas por “pequenas comunidades de crentes”, daqueles que em outras ocasiões ele chamou de “minorias criativas”, capazes, em uma sociedade pluralista, de “despertar em outros o desejo de buscar a luz”.

Na homilia da Missa celebrada em Friburgo, o Papa confiou inclusive a precedência “no Reino de Deus” a estes inquietos buscadores da luz, em vez dos fiéis rotineiros:

“Os agnósticos que, por conta da questão de Deus, não encontram a paz; aqueles que sofrem por causa de seus pecados e têm desejo de um coração puro, estão mais próximos do Reino de Deus do que os fiéis rotineiros, que veem na Igreja somente o que aparece [o sistema], sem que seu coração seja tocado pela fé”.

Isso não é tudo. No discurso dirigido aos católicos engajados na Igreja e na sociedade, Bento XVI invocou para a Igreja uma purificação não apenas dos “excessos” de suas estruturas organizativas, mas das riquezas e do poder em geral, de “seu fardo material e político”. Recordou que isso já valia no Antigo Testamento para a tribo sacerdotal de Levi, que não possuía um patrimônio terreno, mas “exclusivamente a palavra de Deus e seus sinais”.

Estas são afirmações que Joseph Ratzinger sempre harmonizou com outras afirmações complementares. Também o fez desta vez.

Por exemplo, a propósito dos “fiéis rotineiros” precedidos no Reino dos Céus pelos agnósticos que estão na busca de Deus, notou-se que em outro momento de sua viagem – na vigília com os jovens – o Papa confirmou que todos os batizados, inclusive os mais tíbios e rotineiros, são de todos os modos definidos justamente como “santos” pelo apóstolo Paulo, e não por serem bons e perfeitos, mas porque são amados por Deus e chamados todos por ele a ser santificados.

E a propósito de uma Igreja despojada de bens e de poderes terrenos, devemos notar que Bento XVI também insistiu muitas vezes na Alemanha sobre o dever de uma vigorosa “presença pública” desta mesma Igreja, impensável sem seu “corpo” material que faça realidade a fé com as obras.

Mas fica claro que nunca antes desta viagem Bento XVI havia insistido tão acentuadamente no registro espiritual. Jamais havia dado uma preeminência tão forte ao ideal de uma Igreja pobre em estruturas, em riquezas e em poder.

Mas, ao mesmo tempo, nunca antes do discurso que pronunciou no Parlamento, o Papa Bento XVI havia reivindicado tão incisivamente ao cristianismo o fato de ser o fundamento da cultura jurídica ocidental e de toda a humanidade. E à Igreja, de ser hoje a grande defensora dessa civilização, em uma época em que está perdendo seus fundamentos.

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