quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O casamento gay no ano 100 d.C.

SS. Sérgio e Baco, uma união homoafetiva. Via

O casamento gay parece ser uma ideia ultra contemporânea. Mas, há quase vinte anos, um estudioso católico de Yale chocou o mundo ao publicar um livro repleto de evidências de que os casamentos homossexuais eram sancionados pela Igreja Cristã durante uma era comumente chamada de Idade das Trevas, a Alta Idade Média.

John Boswell foi um historiador e religioso católico que dedicou grande parte de sua vida acadêmica ao estudo do tempo entre o final do Império Romano e início da Igreja cristã. Analisando os documentos legais e da igreja a partir desta época, ele descobriu algo incrível. Havia dezenas de registros de cerimônias da igreja, onde dois homens se juntaram em associações que usaram os mesmos rituais de casamentos heterossexuais. Em compensação, não conseguiu quase nenhum registro de uniões lésbicas, o que demostra que a cultura é muito mais masculina.

Amparado por esta evidência, Boswell publicou um livro em 1994, um ano antes de sua morte por AIDS, chamado de Same-Sex Unions in Pre-Modern Europe (“Uniões do mesmo sexo na Europa pré-moderna”). O livro será lançado no próximo mês pela primeira vez em edição digital. Foi um pára-raios instantâneo de controvérsia, atraindo críticas da Igreja Católica e da especialista em sexo e gênero Camille Paglia. Sabendo da visão atual da Igreja sobre o casamento gay, esses detratores argumentaram que a história de Boswell parecia uma ilusão.

Mas não era. Boswell na verdade começou sua pesquisa na década de 1970, e publicou um trabalho igualmente controverso em 1980 chamado Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality: Gay People in Western Europe from the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth Century ("Cristianismo, Tolerância Social e Homossexualidade: Pessoas gays na Europa Ocidental a partir do início da era cristã até o século XIV"). Seu livro revela muito do que ele havia descoberto ao longo de uma vida de pesquisa em fontes primárias nas mais diversas bibliotecas e arquivos.

Como esses casamentos foram esquecidos pela história? Uma resposta fácil é que – como Boswell argumenta – a Igreja reformulou a ideia do casamento no século 13 para fins de procriação. Eruditos e autoridades da igreja trabalharam duro para suprimir a história desses casamentos, a fim de justificar sua nova definição.

Naturalmente, a história é mais complicada do que isso. Boswell afirma que parte do problema é que a definição de casamento hoje é tão diferente que é quase impossível para os historiadores reconhecer documentos de casamentos gays de 1800 anos atrás. Muitas vezes, esses documentos referem-se à união entre “irmãos”, que na época teria sido uma maneira de descrever parceiros do mesmo sexo, cujos estilos de vida eram tolerados em Roma. Além disso, os casamentos mais de um milênio atrás não eram baseados na procriação, mas na partilha da riqueza. Assim, o “casamento” às vezes significava uma união não-sexual de duas pessoas ou famílias. Boswell admite que alguns dos documentos que encontrou poderiam referir-se simplesmente ao fato da união não-sexual enrre dois homens – mas muitos também se referiam ao que hoje chamaríamos de casamento gay.

O jurista Richard Ante escreveu um artigo explicando que o livro de Boswell poderia até ser usado como evidência para a legalidade do casamento gay, uma vez que mostra a evidência de que as definições de casamento mudaram ao longo do tempo. Ele descreve algumas das evidências de Boswell desses ritos do mesmo sexo, no início do primeiro milênio: “O rito do enterro dado a Aquiles e Pátroclo, dois homens, foi o rito do enterro de um homem e sua esposa. As relações de Adriano e Antínomo, de Polyeucte e Nearco, de Perpétua e Felicidade e dos Santos Sérgio e Baco, são semelhantes aos casamentos heterossexuais de suas épocas. A iconografia de Sérgio e Baco era a mesma usada em cerimônias nupciais do mesmo sexo pela Igreja cristã primitiva”.

A principal evidência de que essas uniões do mesmo sexo eram casamentos é que eram muito parecidas com cerimônias heterossexuais. O especialista em literatura Bruce Holsinger descreve os minuciosos relatos de Boswell sobre cerimônias do mesmo sexo: “[Boswell] inteligentemente descreve o desenvolvimento de ofícios nupciais heterossexuais e homoafetivos como um mesmo fenômeno, acompanhando o desenvolvimento deste último de ‘um mero conjunto de orações’ na Idade Média até seu florescimento no século XII, quando já envolvia ‘a queima de velas, a colocação das mãos dos dois noivos sobre o Evangelho, a união de suas mãos direitas, a ligação de suas mãos (…) com a estola do sacerdote, uma ladainha introdutória, a Oração do Senhor, a comunhão, um beijo, e às vezes a circulação ao redor do altar’. Boswell dedica um capítulo inteiro à comparação desses rituais com seus homólogos heterossexuais, revelando uma série de semelhanças extraordinárias entre os dois; em vários apêndices, que totalizam quase 100 páginas, ele compilou inúmeros exemplos diretamente dos documentos (incluindo cerimônias de matrimônio heterossexual e rituais de adoção, para fins de comparação) a fim de permitir que ‘os leitores julguem por si mesmos’, como ele diz”.

Eram estas uniões do mesmo sexo na Idade Média a mesma coisa que os casamentos gays de hoje? Provavelmente não. Pessoas da época talvez não vissem nada de extraordinário em dois homens formando uma união. O próprio casamento significava algo diferente há milhares de anos, e os tabus sociais em relação à homossexualidade ainda não tinham se consolidado. Ainda assim, na obra de Boswell, encontramos registros de instituições em que os casais do mesmo sexo eram celebrados com as mesmas cerimônias dos casais de sexo oposto. Dois homens podiam viver como irmãos, partilhando riqueza, casa e família. E, sim, podiam amar uns aos outros, também.

Embora Boswell tenha morrido antes de seu país começar a permitir essas uniões, ele poderia se vangloriar por saber algo que a maioria das pessoas não conhecia. Mesmo os tipos mais fundamentais de relações humanas mudam com o tempo. Aqueles que foram banidos hoje podem ser abençoados amanhã – assim como foram, mais de mil anos atrás.

Fonte (e também aqui)

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