domingo, 2 de setembro de 2012

Uma Palavra que se torna ação


O que quer dizer praticar a fé? Será que é primeiramente ir à missa no domingo? Será fazer preces e devoções? Não! Praticar a própria fé é ajudar aos desprovidos, é acolher os excluídos, é partilhar com os pobres.

A reflexão é de Raymond Gravel, padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 22° Domingo do Tempo Comum (2 de setembro de 2012). A tradução é de Susana Rocca.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Referências bíblicas:
1ª leitura: Dt 4,1-2.6-8
2ª leitura: Jc 1,17-18.21.22.27
Evangelho: Tiago 7,1-8.14-15.21-23

Após a incursão sobre o discurso do Pão da Vida no evangelho de João, voltamos a São Marcos, o evangelista do ano B, que nos convida a refletir sobre o rosto de Deus traçado pelo Cristo da Páscoa. Nós devemos ouvir a Palavra, escutá-la atentamente, interpretá-la e atualizá-la a fim de nos alimentarmos para levá-la à prática. A Palavra deve se tornar Ação, Agir; caso negativo, ela é inútil. Infelizmente, como acontece frequentemente no caso da liturgia, foram cortados os versículos mais importantes do evangelho e da segunda leitura de hoje. São versículos que ilustram muito bem as mensagens que os autores quiseram entregar às suas comunidades.

Que rosto de Deus se desenha através da Palavra deste domingo? Um Deus que quer uma resposta livre da nossa parte, e não uma submissão alienante às regras e às doutrinas de Igreja. O exegeta Gérard Sindt escreve: “O nosso Deus é um Deus que quer homens livres e não escravos, que espera uma resposta filial e não uma submissão alienante. Não é a estrita observância de preceitos duvidáveis o que honra Deus, mas a fidelidade ao mandamento único: Amarás!”

1. Religião/Fé: O padre francês François Varone dizia que sempre devemos passar da religião à fé. Por quê? Porque a religião acaba afogando a fé até fazê-la morrer. Mas existe oposição entre os dois ou há complementaridade? O padre francês Léon Paillot escreve: “Religião ou fé? Eu creio que Jesus indica prioridades: não temos que colocar a carroça na frente dos bois. Certamente, a fé em estado puro não existe: ela se materializa em atitudes, em sentimentos, em gestos, em decisões. Na Igreja há ritos, devoções, formulações dogmáticas, estruturas que podem variar conforme as épocas e os lugares. Isso é normal. Mas o importante é não colocar essas formas que mudam antes do essencial, que é a fé, pois as formas só estão para encarná-la. O aparelho religioso não é o objetivo, e sim um meio que nos indica a direção para ir até o Outro”.

Se eu entendo bem o evangelho de hoje, o que Cristo denuncia é o fato de colocar a religião por baixo da fé. O que é mais importante? Comer com as mãos sujas por ter trabalhado, ajudado, reconfortado? Ou comer com as mãos limpas por não ter feito nada pelos outros? É verdade que podemos sujar as mãos e lavá-las antes de comer. É evidente! Mas não é essa a questão que Marcos levanta. O que o evangelista quer fazer compreender aos seus leitores é que as regras de pureza se tornaram tão importantes que os fariseus e os escribas não ousam fazer mais nada para não contrair uma impureza. É a regra, a religião e seus ritos que ficam por cima da fé e da prática.

O exemplo que São Marcos dá para ilustrar seu pensamento e que está cortado no lecionário deste domingo é o seguinte: Jesus diz aos fariseus e aos escribas: “Vocês são bastante espertos para deixar de lado o mandamento de Deus a fim de guardar as tradições de vocês’” (Mc 7,9). "Com efeito, Moisés ordenou: ‘Honre seu pai e sua mãe’" (Mc 7,10) (o que significa: ocupa-te deles, caso estejam precisando de ajuda). “Mas vocês ensinam que é lícito a alguém dizer a seu pai e à sua mãe: ‘O sustento que vocês poderiam receber de mim é Corbã, isto é, consagrado a Deus’” (Mc 7,11). “E essa pessoa fica dispensada de ajudar seu pai ou sua mãe” (Mc 7,12). “Assim vocês esvaziam a Palavra de Deus com a tradição que vocês transmitem. E vocês fazem muitas outras coisas como essas“ (Mc 7,13). Não é à toa que o Cristo do evangelho trata os fariseus e os escribas como hipócritas citando o profeta Isaias na versão grega dos Setenta: “Este povo me honra com os lábios, mas o coração deles está longe de mim. Não adianta nada eles me prestarem culto, porque ensinam preceitos humanos’"(Mc 7,6-7).

Ainda hoje não fazemos a mesma coisa na nossa Igreja? Anos atrás, um padre do Opus Dei me disse: “Tu, Raymond, tu és importante na Igreja. Tu acolhes os homossexuais, os divorciados casados novamente e todos os marginalizados... Eu lhe perguntei: Mas por que tu não fazes isso? E ele me respondeu: Eu não posso se eu quero permanecer fiel ao Magistério da Igreja”. Isso é horrível: o pároco está isento do mandamento do Amor, com a bênção das autoridades religiosas porque ele pertence ao Opus Dei. É exatamente o que São Marcos denunciava, no final do primeiro século, na sua comunidade cristã. E que dizer da falta de sacerdotes, hoje, para celebrar a Eucaristia? Prefere-se privar as pessoas desse sacramento a mudar as regras da ordenação sacerdotal. Quando fazemos isso, não estamos colocando a regra antes do essencial? E, finalmente, quando negamos às mulheres a plena igualdade com os homens na Igreja, somos culpados de uma grande injustiça que é, no entanto, corrigida por todas as sociedades civis avançadas. Como se faz para se esconder por detrás de uma tradição no intuito de justificar o injustificável? Afinal, o que é o essencial na fé cristã?

2. O essencial. A partir das leituras que nós temos hoje, há três coisas que são essenciais:

2.1. A liberdade: Deus nos quer livres. Ele está perto de nós; ele faz história conosco. A sua Palavra nos faz viver; ela restabelece a justiça. Não é esse o propósito do autor do livro do Deuteronômio? “De fato, que grande nação tem um Deus tão próximo, como Javé nosso Deus, todas as vezes que o invocamos? Que grande nação tem estatutos e normas tão justas como toda esta lei que eu lhes proponho hoje?” (Dt 4,7).

2.2. A prática: Na segunda leitura de hoje, Tiago nos diz que crer é agir antes que falar. “Por isso, deixem de lado qualquer imundície e sinal de malícia, e recebam com docilidade a Palavra que lhes foi plantada no coração e que pode salvá-los” (Tiago 1,21). Mas não podemos somente escutar a Palavra de Deus que germina em nós, precisamos também colocá-la em prática: “Sejam praticantes da Palavra, e não apenas ouvintes, iludindo a si mesmos“ (Tiago 1,22). O que quer dizer praticar a fé? Será que é primeiramente ir à missa no domingo? Será fazer preces e devoções? Não! Praticar a própria fé é ajudar aos desprovidos, é acolher os excluídos, é partilhar com os pobres: “Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo“ (Tiago 1,27). Quem são as viúvas e os órfãos de hoje?

2.3. O Amor: O Cristo do evangelho de Marcos repreende os fariseus e os escribas por não respeitar o mandamento de Deus, que é o mandamento do Amor. O homem é feito para amar e nada pode impedir-lhe de amar, é frequentemente o que sai dele que é contrário ao Amor: “O que vem de fora e entra numa pessoa não a torna impura; as coisas que saem de dentro da pessoa é que a tornam impura“ (Mc 7,15). Como diz Gérard Sindt: “Vale mais ter as mãos sujas do que não ter mãos!” Isso significa que devemos passar da palavra à ação. O exegeta francês Jean Debruynne acrescenta: “É bem fácil transformar regras em guarda-chuvas”. Isso nos protege dos outros, mas nos impede de intervir para acolher, acompanhar, socorrer, devolver a dignidade e restaurar a justiça para aquelas e aqueles que verdadeiramente precisam. Depois, após ter praticado a nossa fé, nós podemos vir celebrar, com as mãos limpas, o Amor que recebemos e partilhamos.

Para terminar, eu gostaria simplesmente de citar uma palavra do século que vem de Santo Antonio de Pádua: “A palavra é viva quando são as ações que falam. Eu vos peço: que as palavras que calem e que as ações nos falem. Estamos cheios de palavras, mas vazios de ações”.

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