Arte: Andy Goldsworthy
Não é incomum que eu seja abordado ou receba emails de pessoas que leram coisas que escrevi ou me ouviram em algum espaço falando sobre suas experiências e de que forma o meu trabalho de alguma forma ressoa nessas experiências. Foi assim, inclusive, que conheci o meu namorado. Guardo com muito carinho e respeito todas essas confissões, em geral carregadas de muita dor e sofrimento, mas também há alegria e satisfação. Elas acontecem (pessoal ou virtualmente) num espaço que eu chamaria de sagrado e sempre me emocionam, fazendo com que me sinta ao mesmo tempo privilegiado e responsável diante de tamanha confiança. Essas experiências e os seus sujeitos, sem dúvida, são incorporadas no trabalho que desenvolvo e na defesa das coisas nas quais acredito e pelas quais procuro lutar.
Recentemente tive mais uma dessas experiências e que me marcou profundamente. Fui abordado por um rapaz que disse que queria conversar comigo. Percebi que ele tinha me esperado, e esperado a oportunidade em que pudesse falar comigo privadamente. Naquela ocasião, não consegui dar atenção a ele e ficamos de conversar em outro momento. Acabei esquecendo e quando o vi novamente disse que ainda conversaríamos. Ele disse que não era nada importante e apenas algum tempo depois a conversa aconteceu. Achei que ele queria comentar algo sobre meu trabalho, perguntar alguma coisa, tirar uma dúvida. Ele era bastante tímido e a conversa foi curta, talvez mais curta do que deveria ter sido.
Em poucas palavras ele me disse: “Eu queria te dizer que meus pais me mandaram para um desses programas para ex-gays. Eu fique lá durante um período longo e no último dia em que eu estive nesse lugar eu fui abusado sexualmente pelo diretor. Foi então que eu tive certeza de que não havia nada de errado comigo. Eu só queria que você soubesse”. Ou mais ou menos isso, porque de repente eu já nem consegui mais prestar atenção aos detalhes, embora ele falasse com uma serenidade que ainda agora me espanta. Ainda falamos de algumas outras questões. Eu disse que era importante que ele se cuidasse, especialmente agora que estava explorando com liberdade o fato de ser homossexual.
Foi apenas o tempo de eu me afastar um pouco, ficar sozinho, e começar a chorar quase sem me dar conta. Chorei por sentir uma profunda tristeza, de não ter dito tudo o que eu poderia ter dito para que ele ficasse bem e para que as suas feridas, se não fossem curadas, fossem aliviadas. Chorei de raiva, por imaginar que essas histórias são tão reais e tão presentes e continuamos permitindo que elas se repitam em nome de sei lá o que. Chorei por imaginar todas as coisas que foram feitas com esse rapaz e com tantos outros nesse lugar e chorei por causa da minha sensação de impotência, por pensar que eu não pude fazer nada para que isso não acontecesse, para que ele não tivesse que passar pelo que passou. Chorei por tantos outros motivos e todas as vezes que lembro dessa história choro de novo. E, provavelmente, todas essas questões são mais minhas do que dele, pois o seu olhar expressava exatamente o que ele me dizia: “Eu só queria que você soubesse”.
Queria pegar ele no colo, dizer que tudo ia ficar bem e que ninguém mais faria mal a ele – algo que infelizmente eu não posso fazer, nem garantir. Ainda tive uma última oportunidade de abraçá-lo e, olhando em seus olhos, que nesse momento também se encheram de lágrimas disse: “Você é lindo, Deus te ama e não deixa ninguém dizer o contrário”. Uma tentativa de bênção para quem tão generosamente me buscou em confissão e compartilhou algo tão íntimo e pessoal.
Fiquei pensando no que fez com que eu fosse, naquele momento, a pessoa escolhida para ouvir essa confissão. Penso, e só consigo escutar ele dizendo que “queria que eu soubesse”. Talvez como prova definitiva de que os tais ministérios para ex-gays são efetivamente uma violação do direito humano de auto-determinação no âmbito do gênero e da sexualidade e uso abusivo da religião para manutenção de estruturas, padrões e relações de poder desiguais. Talvez o fato de contar para alguém também fosse parte de um processo de cura através da verbalização e do reconhecimento da violência sofrida.
Na verdade não sei. Mas a firmeza, a simplicidade e a serenidade com a qual ele me contou essa experiência me fazem pensar que, de alguma forma, o fato de ele falar e o fato de eu saber pudessem fazer com que outras pessoas não tenham que passar por essa mesma experiência, fazendo da confissão uma denúncia. Por isso, talvez arbitrariamente, eu escrevo esse texto pois, assim como esse rapaz, eu queria que vocês soubessem!
E sabendo, fizessem alguma coisa para que impedir que histórias como essas se repitam, marcando profunda e irremediavelmente a vida de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.
- André S. Musskopf, bacharel, mestre e doutor em teologia pela Escola Superior de Teologia
Reproduzido via blog do autor Tweet
4 comentários:
Muito obrigado por esses posts.
Que bom que você gostou, Mateusz. Também ficamos muito comovidos.
Um grande abraço!
:-)
Que absurdo ter centros para "ex-gays"? Isso não é proibido?
Se for apresentado como uma terapia psicológica, é vetado pelo Conselho de Psicologia e pelo código de ética da profissão. Mas, até onde sabemos, não há uma lei que proíba, ainda mais com a justificativa de ser um procedimento de cunho "religioso".
Lamentavelmente.
Abraço carinhoso.
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