segunda-feira, 19 de maio de 2014

O modelo das igrejas: Cristo ou Feliciano?



A propósito da aprovação, em 16 de outubro de 2013, do projeto de lei 1.411/11, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara (então presidida pelo Deputado Pastor Marco Feliciano), vetando as igrejas de serem enquadradas em crimes de discriminação caso proibissem a presença de homossexuais em seus templos, a Revista Fórum publicou (em 22/10/13) uma entrevista com o historiador e cientista da religião Leandro Seawright Alonso, doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo e pesquisador do grupo de trabalho sobre o papel das igrejas na ditadura civil-militar brasileira da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Como um bocadinho de reflexão crítica histórica e sociológica sempre é salutar, pareceu-nos oportuno reproduzir alguns trechos aqui, mas vale a pena ir à fonte (aqui) original para lê-la na íntegra.

"(...) Alonso acredita que o Brasil ser um Estado laico é um ideal, não é uma realidade. Autor do livro Entre Deus, Diabo e Dilma: messianismo evangélico nas Eleições 2010 (Fonte Editorial), o pesquisador observa ainda como a bancada evangélica busca promover uma instrumentalização do voto religioso, em ascensão no Brasil, e a demonização das esquerdas no País." Com a palavra, Leandro Seawright Alonso:

"Parto da premissa fundamental para quaisquer democracias que a humanidade tem triplo direito: tem direito ao conservadorismo, ao progressismo e à moderação apaziguadora. Na prática, significa dizer que os membros das igrejas protestantes históricas e pentecostais têm o direito de discordar de 'culturas sexuais' alternativas ou das práticas homossexuais propriamente ditas. E têm o direito de fazê-lo com base na Bíblia Sagrada (que na maior parte das vezes carece de melhor interpretação), e em outros pressupostos de fé, de doutrina, de tradição religiosa.
Sobre o projeto de lei 1.411/11, entretanto, considero-o tanto inconstitucional, quanto democraticamente vulgarizador e indiscernível do ponto de vista de um 'espaço aberto ao público'. Porque um templo é lugar de espaços compartilhados com aqueles que não são necessariamente membros da comunidade local. Caso contrário, as igrejas fundamentalistas poderiam funcionar de portas fechadas ao público e renegar os princípios da 'evangelização dos povos'. Sociologicamente, uma igreja requer diálogo com a comunidade ao redor, mas uma seita busca determinado isolamento imaginário em uma 'sociedade dos salvos' intocáveis e sem nenhum interesse de 'conversar' com os seus avessos democráticos naturais."



"Essas atitudes fortalecem convicções religiosas farisaicas de muitas pessoas que acorrem às igrejas evangélicas como atitude de resistência à modernização moral do país. Evidentemente, esse projeto de lei ratificou os princípios fundamentalistas, autoritários e preconceituosos de comunidades religiosas que sustentam certo arcaísmo transplantado de outros tempos para os nossos. Conheço muitas denominações protestantes históricas sérias e éticas (batista, metodista, presbiteriana, etc…), que, embora não concordem doutrinariamente com 'culturas sexuais' alternativas, respeitam profundamente – com raras exceções – os seres humanos com outras orientações sexuais."



"Em uma democracia, em um Estado laico, cabe-nos aceitar as diferenças e conviver em sociedade com as mais variadas formas de pensamentos, de filosofias, de confissões, de crenças, de descrenças. Reconheço que o Estado é pretensamente laico e as pessoas nem sempre são. Nem por isso elas devem legislar em nome do Estado de direito, utilizando-se das suas crenças e descrenças como procura fazer o Feliciano. Se isso acontece é porque os políticos semelhantes ao Feliciano representam milhares de brasileiros com as mesmas visões e intolerâncias. 'Pecamos' também na formação política, no diálogo e na redemocratização das ideias."



"Revista Fórum – O relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil com dados referentes a 2012, divulgado em junho deste ano pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), aponta que os casos de violações (que inclui violência física, psicológica e discriminação) contra homossexuais no Brasil cresceram 46,6% no ano passado. Propostas como essa e a própria atuação da Comissão de Direitos Humanos, com o pastor Marco Feliciano a frente, prejudicam o combate à violência contra a população LGBT?

Leandro Alonso – Prejudicam. (...) uma igreja cristã – que tem logicamente liberdade de crença, de discordância, de ortodoxia – precisa desenvolver uma pastoral eficaz para cuidar de gente, cuidar de seres humanos. Isso inclui o combate a qualquer forma de violência contra os seres humanos – independentemente de cor, credo, orientação sexual. Não existe escolha além do amor cristão. Não foi isso que o Cristo disse? 'E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo [...]' – Marcos 12: 29: 31. (...) uma parcela dos religiosos aderiu à 'apologia da inação', ou seja, à falta de atitude diante das atrocidades cometidas no Brasil contra grupos suscetíveis à violência, tais como as mulheres, os homossexuais, os moradores em situação de rua e outros grupos de seres humanos. Muitos têm medo de se posicionar. Porque existe sempre um risco de má interpretação por suas comunidades locais ou por suas denominações, mas não existe o que temer: cuidar de gente não é o mesmo que concordar com as suas opiniões diversas. Os atos do Feliciano afetaram os números que não são apenas números, mas pessoas que deveriam ser protegidas pelo Estado de direito."



"Grande parte das igrejas evangélicas precisa se “converter” ao cristianismo do Novo Testamento. Sinto-as historicamente distantes dos fundamentos teológicos da Reforma Protestante. Precisam resgatar a concepção do 'protestantismo' em sentido mais amplo que mera contestação moralista herdada do 'american way of life' (estilo americano de vida). (...) Segundo as histórias bíblicas fundantes, Jesus Cristo andou entre todos os seres humanos, tornou-se amigo deles e camarada dos opositores aos fariseus. Ele comeu com os pecadores. Sentou-se à mesa com as prostitutas e sofreu críticas severas dos religiosos. Acusaram-no de 'comilão e beberrão'. Tornou-se 'preso político', foi torturado duramente e recebeu pena de morte. O Cristo irritou os religiosos, pois 'descumpriu' a lei ao quebrar as interpretações ortodoxas, por exemplo, ao 'curar' em um sábado – dia sagrado dos judeus. Digamos que Cristo não era um bom modelo para judeus religiosos. Cabe uma pergunta teológica, aqui: Quem é o modelo das igrejas, Cristo ou Feliciano? Lembre-se que Feliciano fez que o projeto de lei 1.411/11 fosse aprovado e, com isso, algumas pessoas homossexuais serão proibidas de entrarem em templos religiosos oficiais (sem punição para os clérigos protestantes ou católicos). Paradoxalmente, o Cristo disse: 'Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve' – Mateus 18: 38 – 30. Na mesma linha discriminatória, nos Estados Unidos – de outros tempos – algumas igrejas evangélicas colocaram plaquinhas nas portas dos templos: 'aqui não entra nem cachorro e nem negros'. Espero que as igrejas brasileiras não adiram aos 'ditadores evangélicos' e que não reescrevam plaquinhas com palavras semelhantes referindo-se aos mais variados grupos sociais díspares. O pastor batista Martin Luther King Junior, negro corajoso, ativista, compreendeu bem o sentido da luta contra as diferentes 'ditaduras do pensamento' e às multiformes discriminações sociais."



"As chamadas 'igrejas inclusivas' (...) possuem um significado importante na vida dos seus frequentadores. Mas essas igrejas são os abrigos dos excluídos. Perceba que a junção de excluídos não os torna mais incluídos por conviverem entre iguais. Pelo contrário, significa que precisaram se organizar para superar as angústias das violências e dos temores religiosos sofridos pela não aceitação."



"Para usar uma expressão de Antônio Flávio Pierucci, engendra-se um 'efeito fariseu' na política brasileira da 'bancada evangélica' que prega aquilo que não vive. (...) Por forte discurso religioso, os fundamentalistas trabalharam com a manipulação do imaginário religioso contra as 'hostes espirituais da maldade' política (...)

Sobre ser o Brasil um Estado laico, reafirmo que se trata de um ideal e não ainda de uma realidade. Se uma criança evangélica, na aula de religião de sua escola, aprender sobre a mitologia do Candomblé, sobre a poesia do sufismo, e mesmo sobre o catolicismo popular, qual deve ser a reação de sua família? Lembro-me que quando os primeiros missionários protestantes chegaram ao Brasil, eles, como minorias, não poderiam se casar e mesmo sepultar os seus mortos porque a Igreja Católica dominava não apenas os documentos do Império, mas também os cemitérios (nos quais não se poderia sepultar acatólicos). O pressuposto, e o ideal, de Estado laico vieram com a proclamação da República, mas não se pode negar que a presença protestante no País foi fundamental para se repensar as variáveis religiosas no Brasil.

Finalizo com uma reflexão incitada por Pierucci ao abordar em um dos seus textos sociológicos a seguinte passagem bíblica:

'Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será exaltado' – Lc 18: 10 – 14."

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