quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Nem todas as reformas vêm para prejudicar


"Não seria preciso revitalizar o cristianismo com uma dose de paganismo: pelo contrário, é a nossa própria vida cristã que sofreu uma mutilação impondo uma homogeneização semelhante. A Igreja deveria ser o lugar em que os seres humanos, com todas as suas diferenças e os seus itinerários diversos, se reúnem: e, obviamente, estamos ainda bem distantes de alcançar esse objetivo".

Essa é a opinião do filósofo canadense Charles Taylor, em artigo publicado pelo jornal italiano Avvenire, 06-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


Grande parte do nosso passado remoto não pode ser simplesmente abandonado, nem apenas por causa da nossa "fraqueza", mas porque há nisso algo de genuinamente importante e válido. Reconhecer esse fato, na nossa cultura atual, significa comumente ser anticristão, abraçar alguns valores do "paganismo" ou do "politeísmo".

Peter Gay, no seu célebre livro sobre o Iluminismo, descreveu isso como um "paganismo moderno". Assim, talvez, não se faça justiça ao fenômeno na sua inteireza, mas indubitavelmente colhe-se um aspecto importante dele: o que levou John Stuart Mill a exaltar "a autoafirmação pagã" com relação à "abnegação cristã", ou, para dar um exemplo diferente, levou Nietzsche a contrapor Dionísio ao "Crucificado".

Essa posição polêmica às vezes é plenamente devolvida pelos cristãos que se sentem atacados. Mas essa simples contraposição não faz justiça aos fatos. Obviamente, não se trata de colocar no mesmo plano as duas posições contrapostas. Pessoalmente, por exemplo, não ficaria feliz se nunca tivesse ocorrido a passagem ao monoteísmo judeu. Além disso, o fato é que isso e os sucessivos saltos históricos – como o longo processo de reforma no cristianismo latino – foram realizados (e talvez não teria sido possível ocorrer de outra forma) de modo a derrotar e marginalizar aspectos importantes da vida espiritual que, com efeito, floresceram nos antigos "paganismos", apesar de todos os seus erros.

A repressão e a marginalização de um desses aspectos é o processo ao qual fiz referência com o termo "escarnação", a constante desencarnação da vida espiritual, pela qual ela é sempre menos conduzida em formas corpóreas dotadas de um significado profundo e reside sempre mais "na mente". Com isso, não pretendo dizer que o cristianismo, por exemplo, seja inferior ao paganismo, porque, a despeito de todos os seus feitos, faltaria o verdadeiro sentido da encarnação, que estaria presente, ao invés, nas formas mais antigas por ele substituídas.

Digo, pelo contrário, que o cristianismo, enquanto fé no Deus encarnado, nega uma componente essencial sua, até quando permanecer conjugado a formas que escarnam. A encarnação, além disso, está ligada a um medo e, portanto, a uma repressão da sexualidade, da qual deriva um tratamento hesitante ou muito tímido das interrogações sobre a identidade sexual. Uma outra característica negativa, seja das rupturas axiais, seja da Reforma, foi a sua tendência a homogeneizar.

Muitas vezes, o impulso à reforma se traduziu no sonho de remeter toda a vida à influência de um princípio único ou de uma exigência única: o culto do Deus Único, ou o reconhecimento de que a salvação é só pela fé, ou de que a salvação existe só dentro das fronteiras da Igreja. E essa Reforma, frequentemente, se realizou excluindo ou marginalizando tudo o que parece não concordar facilmente, na vida humana, com essa exigência única.

A intuição que muitos procuram expressar hoje invocando a superioridade do "politeísmo" tem justamente este teor: aquelas culturas precedentes levavam em conta a integridade dos diversos aspectos da vida e das suas exigências de um modo que as modernas perspectivas religiosas ou morais perderam. Divindades diferentes – Artemis, Afrodite, Marte, Atena – nos impõem que respeitemos a integridade dos diversos estilos de vida: o celibato, a união homossexual, a guerra, as artes da paz, que a vida conduzida em conformidade a um único princípio, pelo contrário, tende a negar frequentemente.

No fundo, em todos esses movimentos, esconde-se uma tentação protototalitária. Lutero e Calvino seguramente tinham razão ao condenar a ideologia da superioridade espiritual que infectava o monaquismo tardo-medieval, mas fazendo isso acabaram por desacreditar as vocações como tais, reduzindo grandemente a variedade das vidas cristãs. E a sua Reforma contribuiu para produzir, por meio de um outro estágio de "reforma", o mundo secularizado de hoje, em que a renúncia não só é vista com suspeita – em certa medida, isso é sempre oportuno e necessário –, mas também é considerada completamente absurda, uma forma de loucura ou de automutilação.

No fim, aquilo que sobra é um mundo mais estreito, mais homogêneo, mais hedonista. Mais uma vez, o ponto não é que seria preciso revitalizar o cristianismo com uma dose de paganismo: pelo contrário, é a nossa própria vida cristã que sofreu uma mutilação impondo uma homogeneização semelhante. A Igreja deveria ser o lugar em que os seres humanos, com todas as suas diferenças e os seus itinerários diversos, se reúnem: e, obviamente, estamos ainda bem distantes de alcançar esse objetivo.

A lição que devemos tirar disso é que esses momentos de ascensão – em que aquela que chamei de "a pedagogia de Deus" se exalta – são muitas vezes (talvez sempre) altamente ambíguos na sua forma histórica "realmente existente", que frequentemente comportam graves perdas além de inestimáveis ganhos. O indispensável passo adiante, na sua forma concreta, pode impor sacrifícios inaceitáveis. Eis porque sempre é preciso desconfiar dessas narrações dominantes que retratam uma superação simples e sem custos, independentemente se são defendidas pelos cristãos ou pelos protagonistas do Iluminismo.

De fato, justamente essas pretensões de uma superação completa de um passado problemático nos tornam cegos frente às nossas repetições de alguns dos seus horrores.

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