segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Cristianismo, uma mensagem de convívio fraternal

Foto: Li Hui

Em dezembro de 2006, a Revista IHU On-line teve como tema a pergunta "Por que ainda ser cristão?", respondida em forma de depoimentos e testemunhos, que reproduziremos aqui espaçadamente. Esperamos com isso convidar também você, leitor, a refletir sobre a importância da fé e do cristianismo, qualquer que seja o lugar por eles ocupado em sua vida. Um forte abraço! :-)

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Para o filósofo Álvaro Valls, docente nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, um dos motivos para ser cristão no século XXI é que “cada um de nós deve fazer a sua opção, se prefere tentar viver uma vida para o amor e o perdão, ou para curtir a raiva, o ressentimento e o ódio, a ganância, a ambição desenfreada e a busca incessante do prazer. Amor não é só um sentimento, mas é também um mandamento, um dever sagrado”. E continua: “O cristianismo, descontados os desvios que sempre ocorrem na história dos homens, é uma mensagem do convívio fraternal, antes de se constituir numa instituição de poder universal”. Em sua opinião, mais do que uma doutrina, no sentido teórico, a mensagem de Jesus é uma “mensagem de vida, deixando-nos uma mensagem existencial”.

Doutor e mestre em Filosofia pela Universidade de Heidelberg, da Alemanha, com a tese O conceito de história nos escritos de Soeren Kierkegaard, Valls é autor dos livros O que é ética. São Paulo: Brasiliense, 1986; Da ética à bioética. Petrópolis: Vozes, 2004. É o tradutor e organizador da obra Do Desespero Silencioso ao Elogio do Amor Desinteressado - Aforismos, novelas e discursos, de Sören Kierkegaard. Porto Alegre: Escritos, 2004, da qual a edição 123 da IHU On-Line, de 16-11-2004, publicou a orelha do livro. A obra foi apresentada no Sala de Leitura nessa mesma data. Sua contribuição mais recente à IHU On-Line aconteceu na edição 175, de 10-04-2006, quando concedeu a entrevista Paulo e Kierkegaard. Nas Notícias Diárias do site do IHU, www.unisinos.br/ihu, em 16-11-2006, concedeu a entrevista Uma Filosofia brasileira surgirá com tempo e muito trabalho, na qual comenta sobre sua recente indicação à presidência da Anpof na gestão 2007-2008.


Por que ser cristão hoje
Só o fato de que muitos deixaram de ser cristãos nos últimos 150 anos (depois, aliás, da crítica de Kierkegaard à cristandade), não basta para nos levar a abandonar a fé de nossos pais. Mas, dito de modo positivo, há no quarto evangelho, no capítulo 13, 34-35, uma boa razão: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Nisto conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.” Ou seja, cada um de nós deve fazer a sua opção, se prefere tentar viver uma vida para o amor e o perdão, ou para curtir a raiva, o ressentimento e o ódio, a ganância, a ambição desenfreada e a busca incessante do prazer. Amor não é só um sentimento, mas é também um mandamento, um dever sagrado. Uma religião do amor, baseada nas palavras do profeta da Galiléia, e transmitida com todas as falhas humanas que a história de nosso gênero relata, não é incompatível com uma visão de mundo secularizada, ou seja, onde não há espaços sagrados separados dos profanos. Ora, a técnica e a ciência, se não são neutras, pelo menos são bastante relativas, podendo ser usadas para o bem ou para o mal. Já uma economia centrada só no lucro, na ganância, no aumento da riqueza e do poder de pequenos grupos, não é neutra, e precisa ser infiltrada por uma inspiração religiosa que busque aumentar o espaço do amor.

Por que acreditar em Jesus
Creio que podemos repetir, com São Pedro, que só Jesus tem palavras de vida eterna. Então, sendo assim, a quem iremos? A Marx, a Freud, a Darwin, a Einstein, a Hegel, a Nietzsche? Não seria melhor e mais correto reconhecer que os diversos cientistas e filósofos trouxeram contribuições mais ou menos importantes para compreendermos aspectos da realidade, mas que também, quando se trata da pergunta pelo sentido da vida, não há comparação? A fé não se baseia em argumentos, pois estes apenas servem numa propedêutica, para mostrar onde está o lugar em que é preciso parar e decidir se queremos crer ou nos escandalizar, - pois estas são as duas opções, apesar de todas as grandes sínteses. Por sua vez, nem Maomé, nem Confúcio, nem Buda me tocaram mais do que a vida e o ensinamento do Nazareno.

O mistério da Trindade
O mistério da Trindade, em que se deve crer, às vezes, é muito mal-apresentado por padres ou catequistas que se reduzem a paradoxos aritméticos mirabolantes, jogando com os números um e três, daí não saindo nada. Uma das vantagens da religião trinitária é que afirma a ação do Espírito Santo, tão negligenciado entre os católicos. A grande questão, que me faz refletir todo o tempo, é a da ressurreição do Salvador, pois se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé, como já o dizia Paulo. E então seríamos, malgrado as apostas de Pascal, as criaturas mais dignas de lástima. Porém, se ele ressuscitou, temos uma vida eterna e pessoal, de alguma maneira, pela frente, depois desta curta existência.

Convívio fraternal
O cristianismo, descontados os desvios que sempre ocorrem na história dos homens, é uma mensagem do convívio fraternal, antes de se constituir numa instituição de poder universal. Esta verdade ensinou e viveu, recentemente entre nós, um Dom Luciano Mendes de Almeida , bispo e jesuíta (e dos bons) ou, há poucos anos, mais distante de nós, Madre Tereza de Calcutá. Viver para fazer o bem, como antigamente Francisco de Assis, não é hoje em dia um posicionamento trivial, e sim fruto de uma escolha, uma conversão (metánoia). Mas temos de ter clareza sobre um fato, que já a Igreja pós-concílio (Vaticano II) reconheceu: os católicos vêm perdendo o contato com o povo, sem reconquistar um espaço no mundo da cultura atual. O messianismo demagógico, que identifica sem mais a mensagem de Cristo com um partido político mais popular (ou com uma política populista, lembrando Mussolini), voltou nos últimos anos, repetindo a ação dos católicos dos tempos do Integralismo, mas não passa de uma tentativa desesperada, que não nasce da fé e da esperança. As lições de Jesus Cristo continuarão sempre um escândalo e uma loucura: não substituem simplesmente os estudos sociais.

Quanto aos animais não-humanos, uma dissertação defendida em nosso mestrado mostrou que o conceito de “próximo”, enfatizado por Kierkegaard, ou do “outro”, por Levinas , bem poderiam ser aplicados de várias maneiras aos seres vivos que nos rodeiam. E na perspectiva franciscana, também para a natureza circundante: a criação, que de algum modo também espera pela salvação.

A complementaridade da fé e da razão
Fé e razão são complementares, por isso muitos doutores da igreja falaram da fé, buscando o conhecimento, e do conhecimento buscando a fé. Santo Agostinho é um pensador atual, depois de um milênio e meio. E se um pensador como Nietzsche ataca violentamente o cristianismo, sempre se pode aprender com ele e com as partes de verdade que há em suas críticas, mas também podemos ler Dostoiévski, para ver como é possível ser cristão apesar dos nossos tempos. O convívio com os cientistas seria muito facilitado, em todo caso, se certas autoridades eclesiásticas não opinassem tanto sobre assuntos que ignoram completamente, ou que conhecem superficialmente. A ética e a moral estruturam seus discursos, de certo modo, a posteriori, ou seja, refletem, com base nos grandes princípios e mandamentos, sobre os casos que vão surgindo (às vezes inéditos). Interditos apriorísticos em geral só atrapalham, e havia um grande mérito na verdadeira casuística (que depois se tornou expressão pejorativa): o cuidado com os detalhes concretos, para o que, aliás, a ciência certamente pode ser indispensável. Os próprios escolásticos, antigamente, gracejavam entre si: “Se tivesses estudado melhor a teologia, não dirias tais coisas”.

Paulo de Tarso e o Cristianismo
Paulo de Tarso foi um tipo genial, um intelecto espantosamente produtivo, e não é totalmente errada a afirmação de Nietzsche de que foi ele que “inventou” o cristianismo; ou ao menos teríamos de estranhar quando, ainda hoje, um livro de moral cristã dedica metade de suas páginas ao ensino de Jesus e a outra metade (!) ao de Paulo de Tarso. E por que toda missa tem que ter, antes da leitura dos Evangelhos, também uma das epístolas, quase sempre (ao menos supostamente) de Paulo? Será que ainda se pode dizer então que, como apóstolo, Paulo apenas transmitiu a mensagem, ou ele de fato a refundiu numa síntese grandiosa, eclipsando os outros apóstolos, como Pedro, Tiago ou até mesmo o discípulo amado? Mas tudo bem, em vez de apenas criticarmos as epístolas, não seria o caso de lermos com mais atenção os quatro evangelhos, meditando sobre o sermão da montanha, tão descurado em nossa política ocidental?

Os desafios do cristianismo no século XXI
O grande desafio do cristianismo é sempre o mesmo: ser vivido na prática. Jesus não era um professor a ensinar uma teoria, ou um pensador a esboçar um sistema, aberto ou fechado. Veio para trazer a vida, e vida em abundância. Mais do que uma doutrina, no sentido teórico, o que fez foi pregar, com as palavras e o exemplo, uma mensagem de vida, deixando-nos uma mensagem existencial. Não consta que ele tenha feito uma verificação escrita sobre os ensinamentos do sermão da montanha, ou que mandasse os discípulos analisarem criticamente as parábolas. O Evangelho fala outra linguagem: “Vai e faze o mesmo!” O que mais interessa é portanto a dimensão pragmática. Ou, conforme aquela outra tese: não basta interpretar, é preciso transformar o mundo em que vivemos. Rumo à comunidade dos santos, dos filhos de Deus (sem esquecer que a Igreja triunfante não pertence a esta terra, onde se esforça a Igreja militante).

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