sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O ícone e a caricatura


O ícone é um tipo de pictografia que se distingue de outras por ser um caminho de contemplação dos mistérios de Deus, a exemplo da Trindade e da Encarnação. A contemplação através de ícones é uma tradicional forma de oração e degustação do divino, sobretudo na tradição ortodoxa cristã. O encontro de Deus através de uma imagem visa a um encontro autêntico com a identidade divina sem o uso de palavras ou conceitos. Há, então, um duplo paradoxo. Eis o primeiro paradoxo desse meio de expressão: apesar do uso de imagens, ele tem em vista uma superação destas imagens para o acesso ao mistério de Deus. Outro elemento paradoxal é que tal degustação não fica estacionada numa percepção sensorial, mas busca uma experiência totalizante, cuja centralidade, aí sim, pode reverberar no emocional.

Num extremo antagônico a este temos a arte evanescente da caricatura. Se o ícone evoca o mistério absoluto, a caricatura foca a relatividade da esfera do cotidiano como se fosse uma crônica do dia-a-dia sob forma visual. A charge, como exemplo de caricatura, serve para relativizar e satirizar o que se apresenta como “poder” e “verdade”. Nos jornais, ela nos faz pensar sobre determinadas situações de modo simples e espirituosamente incisivo. Neste processo interpretativo, cabe acompanhar as notícias e saber do assunto nela tratado, frequentemente sobre situações políticas ou de nosso cotidiano.

Logo, na caricatura, tudo evoca o que há de mais relativo; enquanto no ícone, o que há de mais absoluto. Um estilo é o oposto do outro. Há uma diferença na técnica do caricaturista e do iconógrafo. Ademais, com metodologia e objetivos distintos entre si, caricatura e ícone apresentam duas abordagens imagísticas diferentes do real. Sobre isso, há de se considerar que ambas dessas abordagens não se pretendem um acesso nítido do real. O mistério e o cotidiano não são realidades constatáveis por meio de instrumentos empíricos de análise.

Não se encontram em ambas as artes uma postura objetiva à maneira de um espelho, que refletiria exatamente a realidade tal e qual. As interferências do inconsciente e dos valores de cada um são matérias-primas do iconógrafo e do caricaturista em suas ânsias por revelação.

Assim, uma separação muito rígida entre o ícone e a caricatura, além de estreitizante, seria infiel à rica dinâmica dessas duas expressões artísticas. Caso fossemos fortemente estanques em nossa vida cultural e pessoal, iríamos provavelmente aprisionar o ícone numa catalogação dos “meios contemplativos”, excluindo o mistério de modos alternativos (alter-natura) de manifestação, o que seria um contracenso. Do mesmo modo, o caricaturista deveria ser franqueado a expressar a sua espiritualidade, mesmo que seja por uma via irônica, ou seja, pela ironia diante de teologias que se arrogam ahistóricas, colocando uma gravidade e seriedade sobre Deus, que nos impediria de concordar com a afirmação de Nietzsche: “Eu somente acreditaria em um Deus que soubesse dançar”.

Talvez tenhamos apenas caricaturas do divino. Deveríamos deixar de pretender explicar a Deus. Deus é o semper maior da tradição agostiniana e inaciana. Ainda que seja estranho conectar este semper maior com a caricatura e não com o ícone, usualmente associado à contemplação. Entendo que, paradoxalmente, a caricatura também pode servir a esse mote, pois Deus está além de nossa capacidade de acesso a ele.

Renunciar a isso, também poderia nos ajudar a entender as produções teológicas como produtos culturais, e assim mais próximos de discursos caricaturais sobre o seu mistério. Afinal, discursos que se apresentam como sendo descrições objetivas do mistério, além de pretensiosos e equivocados, não se abrem para as interpretações que discordam.

- Marcelo Barreira
Doutor em filosofia pela Unicamp e professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Reproduzido via IHU

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...