terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Bento XVI e os Gays: Balanço e Perspectivas


O término do pontificado de Ratzinger é um momento bastante oportuno para avaliações, sobretudo em um de seus aspectos mais polêmicos e conflitivos, que é a relação com o mundo gay.

À primeira vista, saltam aos olhos as declarações duríssimas contra o casamento gay, as famílias homoparentais e a teoria de gênero. A equiparação da união homossexual à união heterossexual é considerada uma ferida grave infligida à justiça e à paz. A família sem a dualidade homem e mulher tornaria o filho não um sujeito de direito, mas um objeto que se pode adquirir. E a teoria de gênero, que contesta a heterossexualidade compulsória e a submissão da mulher ao homem, seria uma auto-emancipação do ser humano em relação à criação e ao Criador, conduzindo-o à destruição de si mesmo. Estas oposições da Igreja já existiam no pontificado de João Paulo II, mas Bento XVI lhes deu uma dimensão catastrófica. Isto teve imensas repercussões na mídia, além de inevitavelmente alimentar o ódio contra os gays.

Estas declarações, porém, não são tudo. Houve um avanço importante que ficou quase despercebido. Em 2008, discutiu-se na ONU a descriminalização da homossexualidade em todo mundo, conforme uma proposta encabeçada pela França. Nações ocidentais se posicionaram a favor, e nações islâmicas contra. A delegação da Santa Sé, ainda que divergindo parcialmente da proposta francesa, manifestou-se pela descriminalização e condenou todas as formas de violência contra pessoas homossexuais. Para a Igreja, os atos sexuais livres entre pessoas adultas não devem ser considerados um delito pela autoridade civil. Isto significa admitir, no mínimo, que eles não são uma ameaça para a humanidade.

Houve também ruídos de comunicação bastante infelizes. Em uma viagem à África, em 2009, Bento XVI declarou que não se pode superar o problema da aids só com dinheiro e distribuição de preservativos. Se os africanos não se ajudam, assumindo responsabilidades pessoais para humanizar a sexualidade, o problema aumenta. Correu o mundo a notícia de que o papa na África disse que a camisinha só aumenta o problema da aids. Na verdade, a declaração na íntegra não apóia e nem condena a camisinha, mas a sua formulação não foi suficientemente clara para evitar aquele tipo de notícia. No ano seguinte, o papa finalmente inovou, afirmando que em algumas circunstâncias o uso do preservativo representa o primeiro passo para uma humanização da sexualidade.

Outro avanço foi a declaração de autoridades vaticanas, há poucas semanas, defendendo direitos civis para casais de fato, homossexuais ou não, a fim de se garantir questões patrimoniais e se facilitar condições de vida, impedindo injustiças para com os mais fracos. Foi dito que o legislador deve responder às exigências que antes não existiam.

A cidadania LGBT por um lado é fortemente combatida, mas por outro lado é apoiada. Esta disparidade na Igreja Católica se deve à sua tradição milenar judaico-cristã, que é heteronormativa, e à sua inserção no mundo moderno, onde as mudanças ocorrem em um ritmo alucinante. Com o Concílio Vaticano II, nos anos 60, a Igreja incorporou muitos elementos da modernidade, como a aceitação da separação entre Igreja e Estado, o reconhecimento da autonomia das ciências, e da liberdade de consciência. A fidelidade à norma reta da própria consciência é um direito e um dever da pessoa, acompanhados da obrigação de sempre buscar a verdade.

De acordo com o ensinamento da Igreja hoje, nenhum ser humano é um mero homo ou heterossexual, mas é antes de tudo criatura de Deus e destinatário de Sua graça, que o torna filho Seu e herdeiro da vida eterna. Quanto à moral, ela deve se basear na razão iluminada pela fé, servindo-se das descobertas seguras das ciências. Embora a doutrina católica se oponha à prática homossexual, considerada intrinsecamente desordenada, também reconhece que há pessoas com tendência homossexual em circunstâncias onde a prática é inevitável, e a culpabilidade é nula.

A Igreja, porém, não são só o papa e os bispos, que formulam estes ensinamentos. São todos os fiéis, que fazem diferentes leituras nos diversos contextos em que vivem. Na França, por exemplo, o deputado socialista e relator do projeto de lei do Casamento para Todos, Erwann Binet, é católico praticante. Ele afirma que os valores aprendidos na cultura cristã e os valores de esquerda são coerentes. O ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair se converteu ao catolicismo, religião de sua esposa, e defende o casamento gay. Nos Estados Unidos, a maioria dos católicos votou em Obama, bem como a maioria dos protestantes. Todos eles são protagonistas de mudanças importantíssimas em favor do direito homoafetivo.

É preciso reconhecer também que os gays não estão a salvo em muitos ambientes católicos, onde há pregações homofóbicas utilizando a doutrina com extrema rigidez e sem matizes. Alguns gays são encaminhados a “orações de cura e libertação”, que frequentemente são formas escamoteadas de exorcismo. É um assédio moral devastador. Em outros ambientes católicos, por sua vez, há leigos, religiosos e sacerdotes compreensivos e acolhedores. Há grupos que ajudam as pessoas a conciliarem a orientação homossexual e a fé, como o Dignity USA, o Rumos Novos, o Diversidade Católica e a Pastoral da Diversidade. Um dos grandes desafios é proteger os gays dos ambientes religiosos homofóbicos, e encaminhá-los aos ambientes acolhedores.

As mudanças na Igreja começam na sociedade e na vida dos fieis, e aos poucos alcançam a teologia, a hierarquia e a doutrina. Não é do papa e dos bispos que vêm as mudanças, é das bases. Não se espere muito do próximo pontífice, e nem pouco. O mais importante é não haver retrocesso, e se ampliarem os espaços de diálogo entre Igreja e sociedade moderna. Jamais se deve aceitar a falácia de que não há lugar para os gays na Igreja. Jamais se deve cair na armadilha do tudo ou nada. Isto só satisfaz o interesse dos religiosos ultraconservadores, que querem ver os gays o mais longe possível, ou pior, “curados”.

Bento XVI se despede cansado de um ofício desgastante. Inevitavelmente, ficam em nossa memória algumas de suas declarações homofóbicas de ampla repercussão. Porém, ele tem ensinamentos felizes que repercutiram bem menos. Dentre eles, o que mais pode ajudar a relação entre a Igreja e o mundo gay, é este: “o cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva. E é muito importante evidenciar isso novamente, porque essa consciência hoje quase desapareceu completamente”. Nisto, o papa abre portas para caminhos que ele mesmo não chegou a percorrer. Mas outros podem fazê-lo. A bola está conosco.


Equipe Diversidade Católica

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