Arte: Matthew Cox
“Em nosso mundo, há um desejo de igualdade entre homens e mulheres. Se os dirigentes da Igreja continuam a discriminar as mulheres, negando-lhes a plena igualdade com os homens, isso significa que eles agem como donos do Reino e não ouvem os profetas que o proprietário da vinha, Deus, enviou. Em nosso mundo, há um desejo de unidade na diversidade religiosa, respeitando as nossas diferenças. Nenhuma religião pode pretender ser dona da verdade sobre Deus e sobre o mundo. Se os dirigentes da Igreja não forem humildes, reconhecendo os outros iguais a si mesmos, como podem produzir os frutos esperados?”
A reflexão é de Raymond Gravel, sacerdote do Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, comentando as leituras deste domingo, 27º Domingo do Tempo Comum (02 de outubro). A tradução é do Cepat, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.
Eis o texto.
Hoje temos a segunda das três parábolas em resposta aos sumos sacerdotes e fariseus, que perguntam a Jesus, após expulsar os vendilhões do Templo: “Com que autoridade fazes tais coisas? Quem foi que te deu essa autoridade?” (Mt 21, 23b). Ao mesmo tempo, estas parábolas, recolhidas por Mateus, também se dirigem aos líderes da Igreja do primeiro século e, relidas hoje, eles se dirigem também nós.
A parábola de hoje não pode ser mais clara: ela não precisa de muitas explicações, mas merece uma boa atualização. Vemos muito bem que se trata para Mateus de uma releitura teológica dos acontecimentos que tiveram lugar na época de Jesus e no tempo da Igreja primitiva. Os fariseus e os sacerdotes se recusaram a trabalhar na vinha do Senhor. Eles se serviram, em vez de servir... Por esta razão, o Reino foi dado a outros, aos discípulos do Ressuscitado, que produziram frutos em abundância. Mas, cuidado! Não devemos tomar nada como garantido. Se a comunidade de Mateus e as nossas se acharem as proprietárias da vinha, em vez de estarem ao seu serviço, o evangelista as adverte que o Reino lhes será tirado para ser confiado a qualquer outro...
1. A vinha
Na primeira leitura de hoje, o profeta Isaías descreve a relação entre Deus e seu povo como uma relação afetiva, em que Deus tem grandes expectativas. Usando a imagem da videira que requer habilidade e cuidados particulares, o profeta descreve em termos poéticos, a longa e turbulenta relação entre Deus e Israel. De sorte que a decepção será proporcional ao esforço e investimento afetivo colocado nessa relação: “Capinou a terra, tirou as pedras e plantou nela videiras de uvas vermelhas. No meio, construiu uma guarita e fez um tanque de pisar uvas. Esperava que produzisse uvas boas, mas ela produziu uvas azedas” (Is 5, 2). A relação amorosa transforma-se assim em julgamento e os habitantes de Judá são as testemunhas (Is 5, 3).
Na parábola, Mateus assume a imagem de Isaías 5, 1-2: “Certo proprietário plantou uma vinha, cercou-a, fez um tanque para pisar a uva e construiu uma torre de guarda. Depois arrendou a vinha para alguns agricultores e viajou para o estrangeiro” (Mt 21, 33). Todo mundo sabe de quem e do que Mateus está falando: o proprietário é Deus, a vinha é o povo de Israel e os viticultores são os líderes do povo. Na Igreja de Mateus, estamos em continuidade, portanto, com a tradição de Israel e o que Deus fez por seu povo, por amor.
Além disso, no Evangelho de Mateus, o julgamento é diferente. À pergunta de Isaías: “O que mais eu deveria ter feito pela minha vinha, que não fiz? Por que esperei que desse uvas boas, e ela me deu uvas azedas?” (Is 5, 4), Mateus responde: é por causa dos viticultores a quem a vinha foi confiada (Mt 21, 33c). E mais do que isso: os viticultores tornam-se testemunhas de seu próprio julgamento: “Pois bem: quando o dono da vinha voltar, o que irá fazer com esses agricultores?” (Mt 21, 40), e são eles que pronunciam sua condenação: “É claro que mandará matar de modo violento esses perversos, e arrendará a vinha a outros agricultores, que lhe entregarão os frutos no tempo certo” (Mt 21, 41). De fato, na época de Mateus, a vinha foi confiada ao novo povo de Deus: os discípulos de Cristo.
2. Os intermediários
Há três ondas de intermediários entre o dono da vinha (Deus) e os viticultores relacionados no versículo 45: os chefes dos sacerdotes e os fariseus:
1) Os primeiros servos. Estes são os profetas anteriores encontrados nos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis. Todos esses profetas lembraram ao povo de Israel que estava em débito com Deus com relação aos frutos. Mas o povo rejeitou ou ignorou a todos.
2) Os segundos servos. Eles são mais numerosos do que os primeiros, diz Mateus. Trata-se dos profetas posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os 12 profetas menores. Mais uma vez, os viticultores massacraram a todos. De modo que o comportamento dos viticultores simboliza os ouvidos tapados, o coração endurecido, a dura cerviz, a recusa de Israel para ouvir os muitos apelos para uma maior fidelidade, ao longo da sua história, ao Deus da Aliança.
3) O filho. O mesmo destino teve o filho do proprietário (Jesus). Ele fornece uma oportunidade a Mateus para explicitar o papel de Jesus na história da salvação: ele foi rejeitado pelos construtores (uma alusão à sua paixão e crucificação pelo judaísmo oficial), mas tornou-se a pedra angular do novo Templo, a Igreja, pela sua ressurreição. No Targum de Jerusalém é dito que a torre de guarda é o Templo de Jerusalém, onde se celebra e onde se vive a reconciliação. Aqui, no Evangelho de Mateus, a nova torre de guarda é, provavelmente, o Cristo ressuscitado, o novo Templo de Deus.
3. Os viticultores
No tempo de Jesus, os viticultores eram os fariseus, escribas, os chefes dos sacerdotes, os líderes do Povo de Deus. Eles falharam na sua tarefa. Eles agiram como donos da vinha, enquanto eram servos, trabalhadores, operários. Portanto, a vinha foi tirada deles para ser entregue a outros viticultores (os discípulos de Cristo) que devem entregar os produtos da vinha ao proprietário (Deus). Mas cuidado! Mateus intencionalmente não usa a palavra grega laos, para Povo de Israel, mas a palavra ethnos no plural, o que significa: os povos, as nações, os gentios... Trata-se, portanto, de um novo povo, formado não pela raça e pela religião, mas de uma nação formada por diversos homens e mulheres que reconhecem o filho do dono como o filho bem amado de Deus, o filho morto, o Cristo ressuscitado, e que querem tornar-se seus discípulos. Esse novo povo deve produzir os frutos do Reino, ou seja, os frutos da justiça e da paz.
Os viticultores do tempo de Mateus e do nosso tempo (a Igreja) devem se lembrar que eles estão a serviço da vinha e que não são os proprietários; caso contrário, pode acontecer a eles a mesma coisa que aos primeiros viticultores. Na nossa Igreja, onde estamos como viticultores na vinha do Senhor? Nós produzimos os frutos da justiça e da paz que o povo de Israel não soube produzir? Somos verdadeiros seguidores do Cristo Pascal? Estamos realmente a serviço da vinha? Nós nos tomamos como proprietários?
Não é fácil responder a todas estas perguntas. Uma coisa é certa: há sinais, tanto hoje como outrora, para nos ajudar a nos colocar na vinha do Senhor. O exegeta francês Édouard Cothenet escreve: “Como Igreja, a parábola de Mateus está longe de nos transmitir uma garantia incondicional de que somos o novo povo; pelo contrário, a parábola nos convida a refletir sobre a nossa vocação de povo de Deus, a seu serviço no mundo”. Como Igreja do século 21, a nossa missão deve ser vivida hoje, no mundo de hoje, com os seus valores, suas forças, suas fraquezas e suas fragilidades. Se a Igreja não tem em conta essas realidades que são as nossas, como ela pode cumprir a sua missão?
Em nosso mundo, há um desejo de igualdade entre homens e mulheres. Se os dirigentes da Igreja continuam a discriminar as mulheres, negando-lhes a plena igualdade com os homens, isso significa que eles agem como donos do Reino e não ouvem os profetas que o proprietário da vinha, Deus, enviou. Em nosso mundo, há um desejo de unidade na diversidade religiosa, respeitando as nossas diferenças. Nenhuma religião pode pretender ser dona da verdade sobre Deus e sobre o mundo. Se os dirigentes da Igreja não forem humildes, reconhecendo os outros iguais a si mesmos, como podem produzir os frutos esperados?
Para cumprir sua missão, os viticultores de hoje devem dar provas de abertura, de hospitalidade, de tolerância, de respeito; eles devem correr o risco da novidade, em um mundo em mudança, em evolução. Devem, por fidelidade ao Cristo do Evangelho, ao qual se referem, convidar, interpelar, as mulheres e os homens de hoje, para mais justiça, fraternidade, igualdade, dignidade, justiça e amor. Eles devem produzir os frutos de reconciliação e de esperança. Caso contrário, a dura sentença de Mateus aos chefes dos sacerdotes e fariseus será aplicada aos líderes da Igreja de hoje: “O Reino de Deus será tirado de vocês, e será entregue a uma nação que produzirá seus frutos” (Mt 21, 43).
Para concluir, gostaria apenas de lhes citar este breve comentário do teólogo belga Claude Sélis, que escreveu: “A sentença final é severa: ‘O Reino de Deus será tirado de vocês para ser entregue a um povo que produzirá seus frutos'’. Não leiam essa citação de maneira muito precipitada em termos históricos (contra Israel) e privilegiando a situação (para o benefício da Igreja). Leiam-na em termos teológicos e morais: estamos todos submetidos ao desafio de produzir frutos, e todos nós estamos suscetíveis de falhar em nossa missão se não ouvirmos os servos que Deus nos envia”. Estes servos, os profetas, ainda hoje existem... Será necessário, em primeiro lugar, reconhecê-los para poder ouvi-los.
Referências bíblicas:
Primeira leitura: Is 5, 1-7;
Evangelho: Mt 21, 33-43. Tweet
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