terça-feira, 4 de outubro de 2011

A funcionária dos correios e a bênção

Instalação: A. Chernyshev e A. Shulgin
na Bienal de Moscou

“Não podemos ser simplistas. O mundo é complexo, não podemos gritar de maneira otimista como Ortega y Gasset a notícia alegre de “Deus à vista”. Há ambiguidades na religião que devem ser purificadas e evangelizadas, os povos progridem, os batizados precisam de maior formação. Mas o Espírito do Senhor enche o universo, embora não saibamos de onde vem ou para onde vai”, escreve o teólogo jesuíta boliviano, Víctor Codina, em artigo publicado no sítio espanhol Cristianisme i Justícia, 23-09-2011. A tradução é do Cepat, aqui reproduzida via IHU.

Eis o artigo.


Chega à nossa caixa postal o aviso de chegada de um pacote vindo da Espanha para a nossa comunidade de jesuítas. Tenho que fazer vários trâmites prévios para poder retirar o pacote: exigem que apresente o carimbo da minha comunidade, que retorne com ele no dia seguinte, depois tenho que entrar na fila para comprar selos, anotar o número do meu documento de identidade, assinar... Finalmente, me entregam o pacote e a funcionária que sabe que é um pacote para uma comunidade religiosa, me diz: “Padre, sua bênção”. Entre surpreso, admirado e com uma certa timidez, lhe dou a bênção.

Abençoar é invocar a proteção divina sobre alguém, sobre sua saúde e seu trabalho, sobre sua relação com Deus e com os seus, é desejar-lhe um raio de luz em meio às nuvens de cada dia.

Ao deixar o local me perguntava o que diriam Feuerbach e os mestres da suspeita (Marx, Freud e Nietzsche) sobre a minha bênção à funcionária, o que diria o teólogo luterano Barth com sua forte crítica à religião e, sobretudo, qual era a opinião de Bonhoeffer que, em seus escritos da prisão, exortava a viver no mundo secular “como se Deus não existisse” (etsi Deus non daretur); o que diriam alguns teólogos atuais que questionam a oração de petição, aqueles que criticam a religião e tendem a reduzir o cristianismo à imanência de uma ética secular, o que diriam aqueles que defendem uma espiritualidade sem religião, nem crenças, nem deuses; o que pensariam aqueles que optaram pelo agnosticismo ou pela indiferença religiosa...

Eu também me perguntava: abençoar publicamente uma funcionária dos Correios é um resto da cristandade barroca e decadente que ainda resiste em morrer? É um fruto típico dos países subdesenvolvidos? Estarei fazendo o jogo do conservadorismo involucionista? Terei pecado por clericalismo patriarcal? Estarei fomentando a fé de carvoeiro ou mesmo a superstição? É, política e eclesialmente, correto fazer o que fiz? Poderia ter me negado a dar-lhe a bênção?

E, contudo, para além destes questionamentos e ambiguidades, podemos nos perguntar se a hemorroíssa que tocou no manto de Jesus não o fez com uma fé profunda que o Senhor louvou. Podemos nos perguntar se a fé e a devoção dos pobres, daqueles que não têm outros recursos, não merecem respeito. Não foi a eles que o Pai revelou os mistérios do Reino? A secularização rampante é um fato que de forma determinista chega a todos e a todas as partes por igual? É a mesma coisa que acontece na praça Tarhir, no Cairo, onde os homens ajoelhados rezam, e o que se vive nas praças europeias ou norte-americanas, cheias de comércio e de letreiros luminosos?

Segundo a fé cristã, o ser humano é movido interiormente pelo Espírito de Jesus, tenha conhecimento disso ou não, Espírito que muitas vezes com gemidos inenarráveis nos move a clamar Abba, Pai! Não sabemos como esta oração ou a bênção pode ser eficaz, é um mistério, mas acreditamos que não é um grito que cai no vazio, como não caiu no vazio a oração de Jesus no Getsêmani. Por isso, J. B Metz em seu último livro, Mística de olhos abertos, Friburgo, 2011, se pergunta se não acontece às vezes que mesmo o não crente reza etsi Deus daretur, como se Deus não existisse...

Não podemos ser simplistas. O mundo é complexo, não podemos gritar de maneira otimista como Ortega y Gasset a notícia alegre de “Deus à vista”. Há ambiguidades na religião que devem ser purificadas e evangelizadas, os povos progridem, os batizados precisam de maior formação. Mas o Espírito do Senhor enche o universo, embora não saibamos de onde vem ou para onde vai. Daria novamente a bênção à funcionária dos correios, embora não seja politicamente correto, porque, e se Deus existisse...? Talvez poderia ter acrescentado à bênção as palavras de Jesus à hemorroíssa: “Filha, sua fé curou você. Vá em paz” (Mc 5, 34).

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