sábado, 29 de outubro de 2011

Religiões: o diálogo passa pelo bem

"Lendo as entrelinhas": projeto arquitetônico Gijs Van Vaerenbergh

A peregrinação a Assis (entenda do que se trata aqui) não foi desejada para "rezar juntos", mas sim para "estar juntos para rezar". A única coisa que sempre é possível compartilhar com todos é um silêncio adorante vivido uns ao lado dos outros, na certeza de que Deus vê, une, acolhe o que sobe do coração humano como desejo de bondade e de salvação.

A afirmação é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, em sua lectio magistralis proferida nesta quarta-feira, 26, em Assis, na vigília de oração pela paz com o papa. A reflexão foi publicada no jornal La Stampa, 26-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


Na Jornada de Reflexão, Diálogo e Oração pela Paz e a Justiça no Mundo convocada pelo Papa Bento XVI, pode-se entrever, ao lado de uma substancial continuidade com a iniciativa de João Paulo II em 1986, alguns acentos de novidade. Para esta jornada, de fato, também foram convocadas personalidades do mundo da cultura que não se professam religiosas. Além disso, o encontro está intitulado "Peregrinos da verdade, peregrinos da paz", colocando em relevo, assim, como a busca da verdade é essencial para que possa haver uma busca da paz.

Aqueles que presumem conhecer Bento XVI e, muitas vezes, o apontam como "corretor" dos seus antecessores gritaram a traição, e alguns deles até se dirigiram a ele com cartas que o convidavam a cancelar essa iniciativa. Os tradicionalistas cismáticos expressam a sua condenação, e o mesmo fazem alguns católicos que temem o evento porque o julgam como um encorajamento ao sincretismo ou ao relativismo, segundo o qual todas as religiões se equivalem.

Assim, mais uma vez na nossa Igreja, cada vez mais dividida e conflitual, perfilam-se acusações e contraposições que marcam com desconfiança toda iniciativa e a tornam ocasião para uma negação de quem, longe de ter uma outra fé, simplesmente aparece com diversidade de estilo, de tons, de atitudes pastorais, de modos de se colocar na história e em meio aos homens.

Além das reações também descompostas, a vontade de Bento XVI de assumir o espírito de Assis confirma o caminho de diálogo desejado pelo Vaticano II e mostra como a Igreja Católica tem a consciência de uma missão verdadeiramente universal: isto é, uma missão que se refere a todos no respeito do caminho e das vias religiosas de cada um, na convicção de que todos os homens são irmãos porque são filhos de um único Pai e Criador, e que nenhum deles jamais poderá ser alheio ao mistério pascal de Jesus.

Também deve-se dizer que muitos temores repousam sobre um mal-entendido fundamental: presume-se que o diálogo requer deixar de lado a própria fé e esquecer a verdade. Na realidade, o diálogo implica uma autêntica reciprocidade, pede que se ouça o outro e a sua fé com respeito, mas, ao mesmo tempo, que se fale com parrésia sobre a própria fé. O diálogo inter-religioso exige que cada um dos dois parceiros conheça a sua própria tradição e permaneça fiel a ela, que seja um testemunho da sua própria fé sem a pretensão de impô-la ao outro. O diálogo, se bem compreendido, até faz parte da evangelização, porque só dialogando de modo autêntico é que se assume o estilo de Jesus, o estilo do Evangelho, o dos discípulos enviados entre os povos.

O caminho do diálogo é um percurso coerente com a grande tradição da Igreja. Desde os primeiros séculos, os Padres da Igreja, interrogando-se sobre as diversas tradições religiosas em meio às quais os cristãos eram uma realidade nova e minoritária, discerniam as semina Verbi, ou seja, a presença de "sementes da palavra de Deus", de traços do Espírito Santo, de raios de verdade.

Em todas as realidades, em toda a história, a palavra de Deus sempre trabalhou e, junto com ela, jamais dissociado dele, o Espírito de Deus. Com a Encarnação, depois, é o próprio Deus que se fez homem, carne, e habitou em meio a nós. A Palavra espalhou as suas sementes de vida nas culturas de todos os povos, sementes que inicialmente estão escondidas, mas que depois se desenvolvem e aparecem na história, nas diversas culturas.

Em outras palavras, Cristo é a única verdade, mas raios da sua luz se encontram em cada ser humano, criado por Deus à sua imagem e semelhança. Verdades, estas, jamais desmentidas, que levaram Paulo VI a constatar que "as religiões (...) ensinaram gerações inteiras a rezar", enquanto João Paulo II atestava: "Nós podemos considerar que toda oração autêntica é suscitada pelo Espírito Santo que está misteriosamente presente no coração de todos os homens".

Mas sob quais condições é possível convocar crentes de fé e religião diferentes para rezar pela paz? Quando foi organizado o encontro de 1986, em resposta às diversas contestações levantadas contra a iniciativa papal, afirmou-se insistentemente que a peregrinação a Assis não era desejada para "rezar juntos", mas sim para "estar juntos para rezar". Desse modo, insistiu-se sobre a impossibilidade de uma oração comum, porque está só é possível entre cristãos de diferentes confissões, que reconhecem o Deus trinitário e confessam Jesus Cristo como único salvador. Os cristãos não podem assumir as formulações de oração de outras religiões e, reciprocamente, os outros certamente não gostariam de adotar as orações cristãs.

A oração, eloquência da própria fé, nos pede que rezemos juntos como cristãos que confessam a fé expressa no Credo Apostólico. Pede-nos também que rezemos juntos entre judeus e cristãos (pelo menos através dos Salmos), filhos gêmeos do Antigo Testamento que confessam o mesmo Deus e esperam dele a plena redenção.

Porém, somos impedidos de fazer uma oração comum e pública com crentes de outras religiões: a única coisa que sempre é possível compartilhar com todos é um silêncio adorante vivido uns ao lado dos outros, na certeza de que Deus vê, une, acolhe o que sobe do coração humano como desejo de bondade e de salvação. Deus conhece quem busca o seu rosto: ele certamente vê e cria uma comunhão que nós não podemos nem medir nem reconhecer. No entanto, como lembrava João Paulo II no discurso à Cúria Romana em 1986, consciência e fé nos dizem que "há um só plano divino para todo ser humano que vem a este mundo, um único princípio e fim", porque "as diferenças são um elemento menos importante do que a unidade que, ao contrário, é radical e determinante".

Nós, cristãos, acreditamos que Jesus Cristo é o único salvador, o único mediador e o único Senhor dos homens, e é justamente essa fé nele que nos leva ao encontro dos homens do mundo, das diversas culturas e religiões, com grande simpatia, com o desejo de ouvir o que arde em seus corações, com o desejo de aprender com eles também, no diálogo e no debate franco, livre, capaz de acolhida recíproca.

Nós não somos ingênuos otimistas, mas, ao contrário, é com esforço que buscamos assumir os sentimentos, as atitudes e os pensamentos de Jesus, ele que quis se encontrar com todos: sãos e doentes, justos e pecadores, ricos e pobres, judeus e pertencentes aos povos, pessoas com a fé em Deus ou que não conheciam Deus. Jesus nunca julgou nem condenou ninguém. Até se sentou à mesa dos impuros, dos pecadores e dos malditos: e como poderíamos nós, seus discípulos, nos recusar a aceitar qualquer um dos nossos irmãos e irmãs em humanidade?

Sim, nós, homens e mulheres, somos todos cegos em busca de sermos curados, coxos que se esforçam para seguir em frente, gagos ao falar de Deus, muitas vezes surdos ao ouvi-lo. Somos peregrinos em busca da verdade, da justiça e da paz: todos invocamos e esperamos a salvação, aquela "salvação [que] não está nas religiões enquanto tais, mas está ligada a eles, na medida em que levam o homem ao Bem único, à busca de Deus, à verdade e ao amor".

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...