segunda-feira, 16 de junho de 2014

Homoafetividade e evangelização: abrir caminhos (parte 2 de 2)


Como divulgamos aqui, a Revista Vida Pastoral está lançando em julho-agosto um número temático sobre homoafetividade e fé cristã. Reproduzimos esta semana os artigos dessa edição relacionados ao tema de capa, começando por este do Pe. Luís Correa Lima, SJ, que dividiremos em duas partes. A primeira foi postada aqui ontem. Para quem quiser acesso à edição virtual da revista na íntegra, é só clicar aqui. Segue a segunda parte do texto:

2. A evolução histórica

A religião cristã se tornou hegemônica em muitos países, chegando a ser a religião do Estado. O homoerotismo foi classificado como sodomia e criminalizado. Para a Igreja, a sodomia era um crime horrendo: provocava a ira de Deus a ponto de causar tempestades, terremotos, pestes e fome que destruíam cidades inteiras. Era algo indigno de ser nomeado, um “pecado nefando”, que não se podia mencionar, muito menos cometer (Vide, 2007, p. 331-332). Tribunais eclesiásticos, como a Inquisição, julgavam os acusados desse delito e entregavam os culpados ao poder civil para serem punidos, até mesmo com a morte.

Com o advento do Iluminismo e da razão autônoma independente da Revelação, a prática sexual exercida sem violência ou indecência pública não devia cair sob o domínio da lei. Começou uma crescente descriminalização da sodomia. A modernidade, impulsionada pelo Iluminismo, trouxe a separação entre Igreja e Estado, a autonomia das ciências e os direitos humanos, que restringem o poder do soberano sobre o súdito e ampliam a liberdade da pessoa em relação à coletividade. O termo sodomia foi substituído, no século XIX, por “homossexualidade”. A questão é trazida do âmbito religioso e moral para o âmbito médico. O que então era visto como abominação passa a ser considerado como doença. Por muitas décadas, pessoas homossexuais eram internadas em sanatórios. Chegou-se até mesmo ao uso do choque elétrico.

A partir dos anos 1970, houve progressiva “despatologização” da homossexualidade, impulsionada pelo crescimento do movimento gay. Nos anos 1990, a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da lista de doenças. E em 1999, o Conselho Federal de Psicologia declarou que a homossexualidade não é nem doença, nem distúrbio, nem perversão e proibiu os psicólogos de colaborar em serviços que proponham tratamento e cura da homossexualidade. Assim, algumas pessoas são homossexuais e o serão por toda a vida. Não se trata de opção, mas de condição ou orientação. Com isso, surgiu também novo campo jurídico: o direito homoafetivo, contemplando a população LGBT.

A modernidade, em suas grandes linhas, foi assimilada pela Igreja Católica no Concílio Vaticano II. Além do novo enfoque da evangelização e da leitura da Bíblia, o concílio legitimou a separação entre Igreja e Estado e a autonomia da ciência e reconheceu a liberdade de consciência, o direito de a pessoa agir segundo a norma reta da sua consciência e o dever de não agir contra ela. Nela está o “sacrário da pessoa”, onde Deus está presente e se manifesta. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos às outras pessoas no dever de buscar a verdade e de nela resolver os problemas morais que surgem na vida individual e social (Gaudium et Spes, n. 36 e 16). Nenhuma palavra externa substitui a reflexão e o juízo da própria consciência. O Catecismo da Igreja Católica aprofunda esse ensinamento e cita o cardeal Newman: “A consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo” (n. 1.778). É ela quem primeiro representa Cristo para o fiel.

3. O ensino atual da Igreja e as perspectivas pastorais

O papa Bento XVI, certa vez, afirmou que o cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva. E acrescentou que é muito importante evidenciar isso novamente, porque essa consciência hoje quase desapareceu por completo (BENTO XVI, 2006). É muito bom que um papa reconheça esse problema. Há ênfase demais na proibição, gerando ameaça de condenação eterna, culpa e medo que paralisam as pessoas. O ponto de partida do ensinamento cristão deve ser o seu elemento positivo que é boa notícia (evangelho). Francisco segue esse caminho e avança: “o anúncio do amor salvífico de Deus precede a obrigação moral e religiosa. Hoje, por vezes, parece que prevalece a ordem inversa”. Para ele, a prioridade da pregação deve ser curar todo tipo de ferida. Depois se pode falar de todo o resto. O anúncio, concentrando-se no essencial, é também aquilo que mais apaixona e atrai, aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús (Francisco, 2013c). A compreensão e a exposição do ensinamento da Igreja também devem seguir esse itinerário.

Uma carta pastoral afirma que nenhum ser humano é mero homo ou heterossexual. Ele é, acima de tudo, criatura de Deus e destinatário de sua graça, a qual o torna filho seu e herdeiro da vida eterna (CDF, 1986, n.16). A posição da moral católica deve se basear na razão humana iluminada pela fé e encontrar apoio também nos resultados seguros das ciências humanas (n.2). Toda violência física ou verbal contra pessoas homossexuais é deplorável, merecendo a condenação dos pastores da Igreja onde quer que se verifique (n.10). Os atos homossexuais, por sua vez, são considerados intrinsecamente desordenados e, como tais, não podem ser aprovados em nenhum caso (n. 3). Sobre a culpabilidade da pessoa, porém, deve haver prudência no julgamento. São reconhecidos casos em que a tendência homossexual não é fruto de opção deliberada da pessoa e que esta não tem alternativa, mas é compelida a se comportar de modo homossexual. Por conseguinte, em tal situação, ela agiria sem culpa. Alerta-se para o risco de generalizações, mas podem existir circunstâncias que reduzem ou até mesmo eliminam a culpa da pessoa (n. 11). Nesta situação, não se pode dizer jamais que a pessoa está em pecado mortal e deve se afastar dos sacramentos.

A castidade, hoje, é definida primeiramente como a integração bem-sucedida da sexualidade na pessoa, na sua unidade de corpo e alma (Catecismo, n. 2.337). Essa integração é um caminho gradual, um crescimento em etapas marcadas pela imperfeição e até pelo pecado (n. 2.343). Não é o reino do tudo ou nada. É preciso levar em conta a situação em que a pessoa se encontra e os passos que ela pode e deve dar. Só há uma integração bem-sucedida se a pessoa viver em paz com a sua sexualidade, amando o seu semelhante e a si mesma.

O estudo crítico da Bíblia, a devida atenção aos resultados das ciências, a fidelidade à própria consciência e os matizes da moral são referências que tornam o ensinamento da Igreja um componente rico e dinâmico na vida dos fiéis. Não se deve buscar nesse ensinamento nem na Bíblia um manual de instruções próprio de um eletrodoméstico ou um código moral detalhado, universal e imutável. Muitas vezes se fazem citações descontextualizadas da Bíblia e simplificações indevidas da doutrina, com extrema rigidez e terrível ímpeto condenatório dirigido aos gays. A pregação, em vez de curar feridas e aquecer o coração, traz mais devastação; e a Palavra do Deus da vida acaba se tornando palavra de morte. Os gays jamais devem ser tratados como endemoninhados a ser exorcizados ou ser submetidos a orações de “cura e libertação” para mudarem a sua condição.

Sobre o reconhecimento legal da união homossexual, o ensino da Igreja faz severa oposição à equiparação dessa união àquela entre homem e mulher, bem como a mudanças no direito familiar que caminhem nesse sentido. No entanto, ainda que com ressalvas, afirma que se podem reconhecer direitos de pessoas homossexuais conviventes, com proteção legal para situações de interesse recíproco (CDF, 2003, n. 5 e 9). Esse passo é muito importante. Se não há nenhum reconhecimento social ou proteção legal das uniões homoafetivas, a homofobia presente na sociedade pressiona os gays a contrair uniões heterossexuais para fugirem do preconceito. Isso tem acontecido há séculos e traz muito sofrimento às pessoas envolvidas. É necessário que pare. O sacramento do matrimônio, nessas circunstâncias, é inválido (Código de Direito Canônico, Cân. 1.095, n. 3). Os fiéis precisam saber disso. O casamento tradicional não é solução para a pessoa homossexual.

Outra iniciativa é a dos bispos norte-americanos, que escreveram bela carta pastoral aos pais dos homossexuais. O título é oportuno e profético: “Sempre nossos filhos”. Os bispos afirmam que Deus não ama menos uma pessoa por ela ser gay ou lésbica. Deus é muito mais poderoso, mais compassivo e, se for preciso, mais capaz de perdoar do que qualquer pessoa neste mundo. Os bispos exortam os pais a amar a si mesmos e não se culpar pela orientação sexual de seus filhos nem por suas escolhas. Os pais não são obrigados a encaminhar os filhos a terapias de reversão para torná-los heterossexuais. Os pais são encorajados, sim, a lhes demonstrar amor incondicional. E, dependendo da situação dos filhos, observam os bispos, o apoio da família é ainda mais necessário (USCCB, 1997).

Uma forma de acolhimento que vem sendo aplicada por bispos católicos da Suíça se dá por meio das bênçãos. Conforme recomendações da Conferência Episcopal Suíça para a Igreja daquele país, pessoas homossexuais podem ser abençoadas, sem que isso denote qualquer semelhança com o matrimônio sacramental (CES, 2002, n. 3) e sem contrariar as normas da Igreja. No Ritual de Bênçãos, por exemplo, há bênção de uma residência, com orações pelos que nela residem, bênção do local de trabalho e bênçãos para diversas circunstâncias.

Há muitas famílias que têm filhos gays e sofrem imensamente com isso. Os pais frequentemente culpam a si mesmos e não sabem o que fazer. Essa mensagem é muito oportuna também na realidade social e eclesial do Brasil. Os bispos norte-americanos também trataram da pastoral com homossexuais. Nesse trabalho, os ministros religiosos são convidados a ouvir as experiências, as necessidades e as esperanças dessas pessoas. Assim se manifesta o respeito à dignidade inata e à consciência do outro. Gays e lésbicas podem, dependendo das circunstâncias, revelar a sua condição a familiares e amigos e crescer na vida cristã (USCCB, 2006).

As iniciativas em favor do acolhimento são corroboradas pelo papa Francisco: “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?… Não se devem marginalizar essas pessoas por isso” (Francisco, 2013b). Em vez de julgá-las ou marginalizá-las, deve-se fomentar na Igreja um ambiente acolhedor no qual pessoas gays possam buscar a Deus. Que a Igreja seja um lugar onde suas feridas sejam curadas e seus corações aquecidos. Um lugar onde sintam o jugo leve e o fardo suave oferecidos por Jesus.

Bibliografia

CDF (Congregação para a Doutrina da Fé). Homosexualitatis problema. Roma, 1986. Disponível em: .
______. Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais. Roma, 2003.
CES (Conférence des Évêques Suisses). Note pastorale 10. Friburgo, 2002. Disponível em: .
BENTO XVI. Entrevista de Bento XVI em previsão de sua viagem à Baviera (I). Zenit, 16 ago. 2006.
FRANCISCO. Solenidade de Pentecostes. Roma, 19 maio 2013a. Disponível em: .
______. Encontro do santo padre com os jornalistas durante o voo de regresso do Brasil. 28 jun. 2013b.
______. Entrevista exclusiva do papa Francisco às revistas dos jesuítas. Brotéria,19 ago. 2013c.
USCCB (United States Conference of Catholic Bishops). Always our children. Washington, 1997. Disponível em: <www.usccb.org>.
______. Ministry to persons with a homosexual inclination. Washington, 2006. Disponível em: <www.usccb.org>.
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Brasília: Senado Federal, 2007.


Luís Corrêa Lima, SJ
Padre jesuíta, doutor em História e professor da PUC-Rio. Trabalha em pesquisa sobre história da Igreja, modernidade e diversidade sexual. Colabora na Paróquia N. Sra. da Boa Viagem, na Rocinha, e atua no aconselhamento espiritual de pessoas homossexuais. E-mail: lclima@puc-rio.br

2 comentários:

Unknown disse...

Muito obrigado pela postagem deste artigo, este blog tem me feito muito bem.

Equipe Diversidade Católica disse...

Querido Jeovane,

Nós é que agradecemos de coração sua mensagem e nos colocamos à sua inteira disposição, sempre, para o que vc precisar, por aqui mesmo, pela nossa página no Facebook ou pelo e-mail contato@diversidadecatolica.com.br. E, caso você esteja no Rio de Janeiro ou algum dia venha aqui, será mais que bem-vindo em nossas reuniões - é só entrar em contato pelo e-mail acima. Se estiver em São Paulo, BH, Brasília, Curitiba, Recife/Olinda ou Ribeirão Preto e quiser ir às reuniões de um dos nossos grupos-irmãos nessas cidades, avise a gente pra que possamos te colocar em contato com eles.

Um caloroso e fraterno abraço!

Equipe Diversidade Católica

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