sábado, 24 de maio de 2014

(Re)leituras do Gênesis


Saiu hoje no jornal O Globo uma matéria sobre uma nova tradução do Gênesis que está sendo lançada no Brasil do ponto de vista da tradição judaica (o primeiro livro do nosso Antigo Testamento é o primeiro livro da Torá judaica). A reportagem nos pareceu preciosa por seus esclarecimentos acerca do método judaico de leitura e interpretação das Escrituras, baseado na permanente reflexão e atualização críticas à luz do tempo presente. E pensar que só há pouco mais de um século nós, cristãos, e especialmente católicos, começamos a vislumbrar as possibilidades do método histórico-crítico, que só em meados do século XX se tornou oficialmente o método preferencial para leitura e exegese da Bíblia adotado pelos católicos - e que, com o recrudescimento do fundamentalismo entre católicos e reformados, ainda há tantos que defendem leituras literais e descontextualizadas dos textos bíblicos e da Tradição. E, no entanto, talvez o que mantenha a Bíblia viva e sagrada através dos séculos seja justamente sua permanente reatualização à luz dos tempos que correm...

Aliás, é o que mantém a Igreja viva através dos tempos, como bem lembrou esta semana o secretário-geral da CNBB, D. Leonardo Steiner, ao comentar que "A Igreja muda sempre; está em mudança. Ela não é a mesma através dos tempos. Tendo como força iluminadora de sua ação o Evangelho, a Igreja busca respostas para o tempo presente. Assim como todas as pessoas, a Igreja sempre procura ler os sinais dos tempos, para ver o que se deve ou não mudar" (aqui). :-)

Segue a matéria do Globo. Que proporcione reflexões instigantes! Boa leitura! :-)

Narrativa fundamental para o povo judeu, a Torá está longe de ser um texto estático, como muitos podem imaginar. Ao contrário, a tradição judaica é calcada justamente na interpretação dos fundamentos religiosos, o que acaba por aproximá-los da realidade contemporânea, legando um retrato histórico da realidade de cada época. Nesse espírito, chega ao mercado editorial brasileiro uma nova tradução da primeira parte da Torá (Gênese), da Ed. Exodus, de autoria do psicanalista e estudioso do judaísmo Davy Bogomoletz, que pode interessar não apenas aos religiosos, mas também ao público em geral. Ela foi feita com base no texto original e na tradução do rabino argentino Marcos Edery, e traz uma gama variada de interpretações.

A Torá (ou Pentateuco, parte inicial da Bíblia hebraica e que corresponde também aos cinco primeiros livros do Velho Testamento para os cristãos) é o conceito central da tradição judaica. O termo significa “instrução” e oferece aos seus seguidores regras para viver de acordo com as obrigações religiosas e a lei civil. Em geral, o livro vem acompanhado de comentários feitos por rabinos ao longo dos tempos, interpretando e atualizando as leis divinas. Essa tradição de releituras faz com que, por exemplo, inovações médicas sejam mais bem aceitas hoje - mesmo temas considerados polêmicos para outras religiões, caso das pesquisas com células-tronco.

- Novas traduções da Bíblia existem muitas, mas traduções do Pentateuco por autores judeus só havia a do rabino Masliach, bem antiga; a de Jairo Friedlin e David Gorodovitz, mais recente, que traduziram a Bíblia Hebraica integral; e esta, do rabino argentino Mordechai (Marcos) Edery - explica Bogomoletz. - Enquanto as traduções anteriores ou eram destituídas de comentários, como a do Jairo Friedlin e David Gorodovitz, ou traziam muito poucas interpretações, como a do rabino Masliach, esta (do rabino Edery) tem sua força justamente nos comentários, uma coleção enorme de interpretações dos mais variados exegetas judeus, desde o gênio medieval Rashi até comentaristas atuais como Adin Steinzalz.

Muitas interpretações reunidas

Essas variadas interpretações, nas palavras de Bogomoletz, são justamente o grande diferencial desta nova edição, que mantém a atualidade das escrituras.

- Levando-se em conta que os judeus não leem a Bíblia (o Antigo Testamento) sem alguma interpretação da mesma, fica clara a importância desta edição - afirma o especialista. - Para os leitores não judeus, e para muitos judeus também, trata-se de um primeiro contato com a antiga arte judaica de interpretação do texto bíblico.

A ideia, de acordo com especialistas, é trazer o texto divino para o mundo real, como explica o psicanalista Paulo Blank, do Programa Transdisciplinar de Estudos Avançados da ECO-UFRJ, em análise sobre a nova tradução: “A tradição judaica preferiu trazer o texto bíblico ao mundo dos homens, que nele interferem através da linguagem que produz pensamento. Sem essa característica interpretativa, as narrativas bíblicas teriam se transformado numa ordem engessada pela sacralização da escritura.”

- Os judeus sempre interpretaram os textos bíblicos. “Toda geração tem seus intérpretes”, diz um célebre aforismo judaico. E o fato é que, a cada geração, surgem novas descobertas sobre sentidos de versículos e significados de palavras no mesmo texto - explica Bogomoletz. - Não se trata aqui de uma “diferença” entre as interpretações. Cada intérprete estudou a obra de seus antecessores e acrescenta as suas inovações.

Um paraíso sem maçãs

Neste primeiro volume, do Gênese, Bogomoletz cita exemplos de interpretações que, por conta das várias análises, trazem visões diferentes das cristãs. Eva, na tradição judaica, é criada a partir de um dos lados de Adão, não de sua costela. Ela é criada, como explica Bogomoletz, para defrontar-se com Adão, não para servi-lo. A costela, segundo ele, vem do folclore cristão. Tampouco há maçã no paraíso. Na tradição judaica, o “fruto proibido” não é nomeado. Da mesma forma, não existe o “terrível” pecado sexual pelo qual o cristianismo explica a expulsão do casal do céu. O pecado, na tradição judaica, é estritamente político, diz o tradutor, isto é, constituiu-se de uma desobediência.

- A sexualidade não teve nada a ver com isso - garante Bogomoletz. - Ao contrário, a sexualidade é explicitamente estimulada no texto, desde o famoso “Crescei e multiplicai-vos” até as inúmeras bênçãos que prometiam muitos filhos a quem as recebia.

Por conta dessa tradição das releituras e interpretações múltiplas, segundo a historiadora Mônica Selvatici, especialista em identidade judaica e cristã da Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, o judaísmo tende a ser mais dinâmico, mais aberto a mudanças e inovações do que outras religiões.

- A tradição de múltiplas interpretações, de estudo contínuo do texto bíblico, me parece que torna o judaísmo mais aberto, sim. Ele não se fecha numa única verdade, numa única doutrina - afirma Mônica. - E é interessante essa tradução com os diversos comentários ao longo dos tempos, porque permitirá trabalhos variados sobre diferentes leituras históricas.

Bogomoletz concorda. E fala sobre a adaptação das religiões a questões que surgem com a vida moderna.
- Falando como judeu, o judaísmo acredita que Deus nos deu a vida, mas a medicina dos homens está aí para servir à Sua vontade de preservar a vida. Então toda inovação médica é bem-vinda, do ponto de vista dos rabinos, porque representa mais um instrumento a serviço do Criador. O judaísmo não proíbe o aborto, mas põe condições à sua realização (principalmente quanto ao tempo de vida do feto) - enumera. - Já o casamento gay é outra coisa; tem a ver com escolhas individuais, não com o salvamento de vidas em perigo. No entanto, há mais de 15 anos venho ouvindo falar de sinagogas para gays (nos Estados Unidos), e Tel Aviv, a principal cidade de Israel, é quase uma Capital Mundial do movimento gay, apesar de os ortodoxos rangerem os dentes contra.

Para os especialistas, a Torá é essencial também na construção da identidade judaica, como lembra o psicanalista Paulo Blank em sua análise da tradução do primeiro volume do livro. “Amos Oz, o escritor israelense bem conhecido do público brasileiro, publicou em 2012 pela Yale University Press um ensaio intitulado “Jews and Words” (Judeus e Palavras). Apesar de seu ateísmo declarado, ele identifica na adesão milenar às narrativas hebraicas da Bíblia e ao seu estudo — que manteve viva a língua original — o verdadeiro traço identitário dos que hoje se definem como judeus.”

Uma identidade em um texto

A historiadora Mônica Selvatici tem opinião semelhante.

- Os textos que formam o Pentateuco (a Torá) foram escritos em épocas bem distintas - explica Mônica. - No entanto, a edição final desse conjunto unido ocorreu no século VI a.C., quando Nabucodonosor destrói Jerusalém e leva parte da elite judaica para a Babilônia. Neste contexto do exílio, surge a necessidade de se fixar um texto que conferisse essa ideia, essa unidade, uma tentativa de fixação de um povo por meio de um texto.

Mesmo para quem não é religioso, a Torá tem um papel importante na construção da identidade judaica.

- Os religiosos judeus leem a Bíblia Hebraica como ela “foi entregue no Sinai” e acreditam inteiramente que ali está a História do Povo Judeu - explica Bogomoletz. - Já os leigos têm, cada qual, sua opinião mais ou menos fundamentada. Posso dizer que, embora muitas coisas (principalmente as mais antigas, anteriores à fundação do primeiro reino hebreu) possam ser consideradas lendas pelos leigos, não há muita dúvida de que tais lendas se basearam, muitas vezes, em tradições orais bem anteriores.

Professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ, Maria Clara Bingemer defende a ideia de que a Torá é importante para todas as religiões, não apenas a judaica:

- Sobretudo para as monoteístas. Na verdade, o judaísmo transformou o mapa religioso da Humanidade ao inaugurar a fé em um Deus único e pessoal - diz a teóloga. - Claro que isso foi um processo longo que teve etapas e fases até chegar ao monoteísmo tal como é vivido hoje pelo povo de Israel. E esse monoteísmo foi construído a partir da experiência do povo com a escuta de seu Deus, que foi registrada em uma escritura. Nessa escritura, a Lei de Deus (a Torá) tem uma importância fundamental por demonstrar que Ele está ligado à vida do fiel como indivíduo e à do povo como coletivo. A Torá significa esse registro escrito e permanente de um Deus pessoal que fala ao ser humano e lhe dá orientações de conduta para viver a verdadeira adoração e praticar a verdadeira justiça.

Fonte

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