quinta-feira, 8 de maio de 2014

Clara e Marina, entre normas e absurdos

 
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A propósito do casal "Clarina" na novela das nove da Gobo e sua repercussão por aí.

Uma mulher trocar marido e filho por outra mulher é "absurdo", como diz uma das imagens acima, porque que mulher pode se dar a liberdade de trocar o lugar que lhe cabe na sociedade por qualquer outro de sua escolha, e diferente do que dela se espera? Pior, que mulher pode se dar a liberdade de não gravitar em torno do modelo androcêntrico que ainda rege, em grande parte, nossas escolhas e relações?

Imagens como estas denunciam o quanto nossa cultura ainda é normativa, o quanto ainda é difícil sair dos padrões, a carga de recriminações e segregações que tantos ainda têm de suportar como preço a pagar por sua "emancipação". Porque, para aqueles que temos normas a seguir, "autonomia" e "autodeterminação" se confundem com "subversão" e "transgressão". O "prazer", quando escapa aos limites devidamente estabelecidos, se transforma em "devassidão". Mesmo os prazeres clandestinos, para serem tolerados, têm de obedecer às leis que regem o domínio das sombras.

O perigo é que, se trevas e luz não se misturam, a lógica da exclusão de tudo o que escapa às normas condena seus cumpridores a uma paranoia perpétua. Afinal, quanto mais populosa a terra das sombras, mais cercados e acuados estarão os habitantes da luz - ou "cidadãos de bem", ou "defensores da moral e dos bons costumes" (ou, como chamam jocosamente as fãs do casal Clarina, "a família brasileira"). E, no entanto, é por suas sombras que a sociedade normativa respira. São os marginais e clandestinos que insuflam ar novo nos quartos fechados e lubrificam as engrenagens enferrujadas, mesmo pagando caro por isso.

A visão de mundo por trás das imagens acima, muito mais do que "apenas" lesbofóbica e machista, é heteronômica, opressora e sufocante. Mas essas imagens só existem porque expressam a tensão da mudança. Na relação entre a Marina de Manoel Carlos e Clara (esse exemplo de mulher-mãe-e-dona-de-casa da "família tradicional"), dois mundos se chocam e tentam se encontrar. A paixão meio platônica que coloca as duas em algum lugar entre a sedução e essa estranha "amizade" que não ousa dizer seu nome evoca todas as hostes de amantes anônimos que, durante gerações, tiveram de se contentar com migalhas de afeto e fragmentos de ternura - por não terem o direito, como disse Marina um dia desses, de "competir com o amor dele no seu coração"; "ele", o cônjuge legítimo e devidamente nomeado, ao passo que tantos de nós tivemos, e temos ainda, de relegar a expressão e vivência do nosso desejo e do nosso afeto à invisibilidade e ao silêncio da culpa e dos inferninhos. Mas não é só isso. Na dança de encontros e desencontros entre as duas, como nos debates e embates entre correntes antagônicas nas “redes sociais”, vejo as tentativas de mundos antes mutuamente excludentes de negociar e encontrar uma saída da antinomia inclusão/exclusão.

Claro, a Rede Globo, em si, não está fazendo nenhum favor a ninguém. Mas tampouco está discriminando ninguém. O que a emissora de televisão revela é a carga de contradições, a ebulição da mudança no corpo social, a busca de superação da polarização. A história de Clara, Marina, Vanessa e Cadu é a história de todos nós, LGBTs ou não, em busca da terceira margem do rio onde nos libertaremos. Onde não teremos de ser nem anjos nem demônios, mas apenas humanos - cada qual um ser singular, com seu modo único de experimentar e expressar, da maneira mais autêntica possível, seu desejo e seu amor.

- Cristiana Serra, psicóloga e membro do Diversidade Católica

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E o valor da discussão suscitada pelo casal da novela se confirma em vídeos como este:




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