quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Encontrar Deus no "outro"



"Peço a Deus que me livre de Deus". Isto é o que pedia a Deus o Mestre Eckhart, um dos maiores místicos que Igreja já teve ao longo de sua história. Este homem, que nasceu em 1260 (Hochheim - Alemanha) e morreu em 1327 (Avignon - França), foi um dominicano que ocupou cargos de governo e ensino em sua Ordem Religiosa e na Universidade de Paris. Em 1326, o arcebispo de Colônia iniciou um processo contra os ensinamentos de Eckhart em seus sermões. O assunto chegou ao Papa João XXII que residia em Avignon. Mas o místico dominicano se submeteu, de antemão à decisão que pudesse tomar o Pontífice. Eckhart viajou para Avignon para se defender diante do papa, mas antes de poder apresentar a sua defesa, morreu inesperadamente.
Não pretendo expor aqui a doutrina do Mestre Eckhart, ensinamento complexo e nem sempre fácil de interpretar que se fundamenta no mais fundo radicalismo evangélico, em idéias filosóficas que tem sua origem em Plotino, e no "Guia dos Perplexos", deMaimônides. Como é lógico, tudo isto não cabe em um post de um blog tão simples como este. Dito isto, o que eu quero dizer é que o tema de Deus, que deveria servir para unir os humanos, com frequência serve ao contrário. Porque é um fato que a Deus em si mesmo ninguém o viu e nem pode ver (Jo 1, 18). Por isso cada povo, cada cultura, cada religião, cada grupo humano e cada indivíduo "representa-o" como pode. Ou quem sabe como convém ou interessa a cada um.
O problema não está em que aquele que acredita invente o "seu próprio Deus", de acordo com suas particulares conveniências. Não se trata disso. O problema radica no fato de que as pessoas que acreditam em Deus - por isso mesmo - têm a tendência (inconsciente) a relacionar determinados aspectos de usa vida e sua conduta, não com Deus em si, mas sim com a "representação de Deus" que cada qual faz. Ou quem sabe com a "representação de Deus" que lhe impuseram no ambiente religioso em que cresceu, em que vive e ao qual acaba se submetendo. Sobretudo, quando o crente de uma determinada religião está persuadido de que essa religião foi "revelada" por Deus mesmo. Inclusive – o que é ainda mais complicado – quando o crente pensa e aceita. Com isso, o que acontece é que a "representação" que fazemos de Deus acaba por identificar-se com  "Deus em si mesmo". Ou seja, identificamos nossa representação "imanente" com o Deus "transcendente".
E aqui, no processo íntimo (que se vive na intimidade do espírito) que acabo de destacar, aí é onde começa o perigo. O enorme e assombroso perigo que, sem dúvida, intuiu o Mestre Eckhard. É verdade que o pensamento do grande místico alemão ia muito mais longe, até a idéia de Deus mesmo. Mas eu não estou falando disso agora. Estou falando de nossos comportamentos. E bem sabemos que há aspectos de nossa conduta – de nossas idéias até nossos hábitos de vida – que, explicamos a partir de uma suposta vontade absoluta de Deus e por isso mesmo o fazemos de forma tão absoluta, intocável, indiscutível. Acaba que por detrás de posturas tão férreas, tão intransigentes, tão agressivas e até tão violentas, posturas (tão absolutamente intolerantes), tem-se um "deus intolerante", quem sabe um "deus violento". Por isso, às vezes, acontece que as posturas mais profundamente irracionais são, no fundo, posturas profundamente religiosas.
Muitas vezes, ao ver como se comportam ou falam algumas pessoas, me pergunto: "Em que deus acredita esse homem, ou que deus tem em sua cabeça esta mulher"? Eu me coloco muitas vezes essa pergunta por que não me cabe na cabeça que Deus, que é o Deus-Pai de todos os mortais, possa estar legitimando, justificando, impelindo ou promovendo o insulto, a palavra humilhante, a falta de respeito, a intolerância, a dureza de coração… Para não falar da ofensa descarada, do abuso e de tantas outras situações que causam dor, mal-estar, divisão e outras coisas que dá até vergonha em falar.
Quando penso nessas coisas e nesse tipo de situações, não posso deixar de lembrar de numerosos textos dos quatro evangelhos, nos quais Jesus afirma e insiste que quem "recebe", "acolhe", "escuta" ou "rejeita" a um ser humano, ainda que seja o ser humano mais frágil, uma criança, é a Jesus e a Deus a quem "recebe", "acolhe", "escuta" ou "rejeita" (Mt 10, 40; Mc 9, 37; Mt 18, 5; Lc 10, 16; 9, 48; Jo 13, 20). Mais ainda, no juízo definitivo que Cristo, o Senhor, fará de todas as nações da terra, o critério determinante é o que cada um fez ou deixou de fazer com qualquer ser humano (Mt 25, 31-45). Porque a dignidade de todo ser humano é tanta que se identifica com a dignidade do próprio Deus.
O Mestre Eckhart soube extrair dos ensinamentos de Jesus, o mais profundo que seguramente há nesses ensinamentos: a Deus o encontramos no "outro", O encontramos ou o depreciamos nos "outros". O perigo e o horror das religiões consiste em que podemos chegar a "divinizar" nossos sentimentos mais turvos e nossos ressentimentos mais baixos. Quando, em nome da defesa da fé em Deus privamos alguém de sua dignidade, de sua liberdade ou de seus direitos, incorremos em uma autêntica idolatria de blasfêmia. Até o extremo de que, por defender a "deus", desprestigiamos ou ofendemos ao verdadeiro Deus, o Deus que está em cada ser humano.
O problema está em que, para viver isto, não baste tê-lo na cabeça. O absolutamente necessário é o que o mesmo Eckhartdenominava de "despojamento de todo interesse, de todo desejo de possessão, de todo apego", que nos afaste ou nos coloque frente ao outro, seja quem seja. Nesse caso, a "espiritualidade" se converte em "identidade" do espírito humano como a divindade. Assim, e apenas assim, superamos a religião e a metafísica, a divisão do divino e do humano, o sagrado e o profano, e centramos nossa vida na honradez, no respeito, na bondade sem limites e na sinceridade sem fronteiras.

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