quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Toda sociedade produz o seu estrangeiro


A ideia de sociedade proposta por muitos movimentos xenófobos europeus é a de uma comunidade fechada, limitada e reservada aos autóctones. Não uma comunidade "quente", fundamentada na mútua solidariedade, em vínculos internos fortes, mas sim em uma fortaleza nascida para repelir o inimigo e defender seus bens.

A análise é do antropólogo italiano Marco Aime, professor da Universidade de Gênova, em artigo para a revista MicroMega, republicado pelo jornal La Repubblica, 24-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


"Todas as sociedades produzem estrangeiros, mas cada uma produz um tipo particular, segundo modalidades únicas e irrepetíveis". Parece uma paráfrase do incipit tolstoiano de Anna Karenina, mas essas palavras de Zygmunt Bauman evidenciam o processo de produção do estrangeiro como indivíduo, que ultrapassa as fronteiras que criamos e que às vezes mal suportamos.

Define-se como "estrangeiro", continua Bauman, quem não se adapta aos mapas cognitivos, morais ou estéticos do mundo e quem, com sua simples presença, torna opaco o que deveria ser transparente. Segundo o escritor e ensaísta martinicano Édouard Glissant, é justamente a ideia de transparência que é perigosa: "Eu reivindico o direito à opacidade. A definição e transparência excessiva leva ao apartheid: aqui, os negros, lá, os brancos. 'Não nos entendemos', diz-se, e então vivemos separados. Não, digo eu, não nos entendemos completamente, mas podemos conviver. A opacidade não é um muro, sempre deixa filtrar alguma coisa. Um amigo me disse recentemente que o direito à opacidade deveria ser inserido entre os direitos humanos".

Estrangeiro é aquele que subverte os modelos de comportamento estabelecidos, que compromete a serenidade difundindo a ansiedade (...).

"Os objetos se mundializam, os indivíduos se tribalizam". Com essa frase seca e um pouco sarcástica, o escritor francês Régis Debray sintetizou de modo exemplar um fenômeno que marca fortemente estas últimas décadas. É realmente assim?

A implementação de políticas de liberalização em escala mundial, típicas da globalização, não se traduz, de fato, como poderíamos esperar, em um triunfo do individualismo, mas, ao contrário, na proliferação de identidades coletivas. O progressivo descompromisso do Estado social obriga a chamada sociedade civil a se encarregar dos seus problemas. Isso encoraja o florescimento de uma série estruturas (associações, ONGs), que têm como missão a gestão do social no lugar do Estado e que, muitas vezes, se apoiam em formas comunitárias.

"Assiste-se, então, à retribalização das sociedades contemporâneas?", pergunta-se Jean-Loup Amselle. "A resposta é positiva se considerarmos que esse fenômeno está relacionado com a globalização e com a redução concomitante da esfera da intervenção estatal, e não com uma essência qualquer de sociedade que retornaria ao estado natural. Assim como as etnias africanas são o produto de uma história e, portanto, da modernidade, no sentido de que resultam da concretização de categorias importadas e de categorias locais, as tribos dos bairros difíceis são, também elas, o produto da história recente das sociedades ocidentais e, em particular, do descompromisso do Estado".

Estamos naquela sociedade líquida, incerta, descrita por Bauman, em que os pontos fixos tradicionais vieram pouco a pouco a faltar. A pós-modernidade é uma época marcada pela contingência, pela sobrecarga de presente a despeito das outras dimensões. "O pesadelo dos nossos contemporâneos é o de serem desenraizados, sem documentos, sem pátria, sozinhos, alienados e à deriva em um mundo de 'outros' organizados".

Nessa espécie de mar imenso em que nos encontramos flutuando, sem meta e sem um farol à vista, estamos continuamente em busca de um porto. Assim como ao náufrago se lança uma corda para se agarrar antes de ser levado pelas ondas, aos náufragos da modernidade se joga a boia salva-vidas da dimensão étnica.

"A identidade floresce no cemitério das comunidades, mas o faz graças à promessa de ressurreição". Nenhum agricultor jamais fez um museu para proclamar sua identidade: bastava-lhe ser agricultor. A identidade é um substituto da comunidade, que funciona no nosso mundo individualista, e é "no momento em que a comunidade desmorona que é inventada a noção de identidade". A identidade é algo que deve ser inventado, não descoberto. É o produto de um trabalho de construção, não uma matéria-prima que se encontra debaixo do solo de determinado território, nem um nutriente para as plantas de uma determinada região.

É aqui que entra em jogo a etnicidade, e o "nós" regional é definido em termos etnoculturais, que se entrelaçam com interesses econômicos específicos. Enquanto o nacionalismo clássico, o social, se baseava em uma sociedade que incluía diferenças em seu interior, unidas por uma cultura nacional compartilhada e por um sentimento unanimemente percebido, o nacionalismo étnico é exclusivo, não aceita diferenças, porque se baseia exclusivamente na identidade étnica. Uma 'identidade que, tal como é concebida, indiscutivelmente ligada à autoctonia, não pode ser negociada nem modificada, sob pena da "contaminação", termo que incute temor e não por acaso é utilizado nas retóricas da pureza, porque evoca doenças contagiosas e mortais.

Quando a busca de comunidade se torna obsessão, ela corre o risco de se tornar tribalismo. É a ideia de uma sociedade "pura", fundamentada em uma uma suposta origem comum, definida com vagueza porém, mas capaz de fornecer aquela autoctonia a qual é atribuída uma importância fundamental. Evitar misturas, conservar a suposta pureza original.

A simplificação, que reduz tudo a dois elementos contrapostos, (...) trai a falta de elaboração da complexidade, mas que se revela absolutamente vencedora no plano midiático. Além disso, responde perfeitamente à necessidade de satisfazer, a baixo custo, um sentimento de pertença, que não prevê diversidades internas ao grupo do "nós", nem ao dos "outros".

Além disso, essa visão dicotômica e antagônica, que não deixa espaço para nuances, favorece uma adesão acrítica ao "nós", que seria, contudo, melhor do que a solução oposta, construída deliberadamente com base em conotações negativas e diametralmente opostas às nossas.

A ideia de sociedade proposta por muitos movimentos xenófobos europeus é a de uma comunidade fechada, limitada e reservada aos autóctones. Não uma comunidade "quente", fundamentada na mútua solidariedade, em vínculos internos fortes, mas sim em uma fortaleza nascida para repelir o inimigo e defender seus bens.

Retomando a definição de Huxley e de Haddon a propósito da nação em geral, se poderia dizer que "é uma sociedade unida por um erro comum com relação às suas próprias origens e por uma aversão comum com relação aos vizinhos".

Ficam as perguntas:


Quais serão os estrangeiros que nós, religiosos, produzimos, aqui e agora? Até que ponto não erigimos nossa identidade como uma fortaleza que exclui o outro que nos parece tão perigoso?

Quais serão os estrangeiros que nós, LGBTx, produzimos, aqui e agora? Até que ponto não erigimos nossa identidade como uma fortaleza em oposição ao outro que sentimos nos ser hostil?



Como con-viver?

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