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Flávia Péret lançou domingo, em Belo Horizonte, o livro Imprensa gay no Brasil, pesquisa sobre a história dos jornais e revistas dedicados à questão da liberdade e da diversidade sexual.
O respeito à diversidade sexual no Brasil convive com uma sociedade machista. O mesmo país que exibe ao mundo passeatas de orgulho gay com milhões de pessoas na rua volta e meia se depara com manifestações homofóbicas que partem de deputados como Jair Bolsonaro e pastores evangélicos como Silas Malafaia, sem contar cenas explícitas de violência física. A contradição não é de hoje. A imprensa, que espelha a sociedade, parece também ir de um campo a outro, ora afirmando a liberdade, ora ecoando o preconceito. Há 50 anos, um folheto datilografado e reproduzido em mimeógrafo, o Snob, dava início a uma história singular: a imprensa gay brasileira.
As primeiras publicações – logo surgiu a mais expressiva delas, o Lampião da Esquina – tinham como característica o fato de serem produzidas por gays, com assuntos de interesse dos gays e consumidas por leitores gays. Entre o jornalismo e a militância, foram instrumentos de crítica política que não se concentravam apenas no combate à ditadura militar, mas sobretudo às tiranias da intimidade. Com linguagem direta, tom muitas vezes irônico, ampliaram a luta por liberdade de modo a criar constrangimentos até mesmo à esquerda, que sempre foi careta em matéria de sexualidade.
A jornalista Flávia Péret reconstitui essa história no livro Imprensa gay no Brasil, que lança hoje em Belo Horizonte, na Livraria Ouvidor. Resultado de pesquisa em arquivos, o estudo propõe ainda uma leitura dos jornais e revistas ao longo do tempo, a partir de elementos ideológicos, editoriais e de comportamento. Entre os temas que perpassam vários períodos está a luta sempre difícil pela manutenção dos periódicos, o preconceito, a divisão entre a vertente comercial e política, a entrada em cena da pornografia, a questão da Aids, o novo cenário inaugurado com a internet.
O caso do Lampião da Esquina é paradigmático. O jornal, surgido em meio à onda da contracultura, tinha em seu corpo editorial dois nomes que se tornaram marcantes na trajetória da imprensa gay no Brasil, Aguinaldo Silva e João Silvério Trevisan. Escritores e militantes, Aguinaldo e João Silvério se desentenderam quanto aos rumos da publicação. Para Aguinaldo, que depois se tornaria famoso como autor de novelas de TV (é dele o atual folhetim das nove, Fina estampa), o jornal precisava ter compromisso com o mercado em primeiro lugar. João Silvério, romancista e ensaísta, defendia o caráter prioritário da ideologia. Não foi uma questão apenas do Lampião, mas de toda a imprensa gay do período. O impasse levou ao fechamento do jornal.
A liberdade, mais que uma conquista, é uma construção que precisa ser renovada a todo momento. Os primeiros veículos, em sua corajosa mescla de militância e resistência, inauguraram formas editoriais e modos de linguagem, ampliaram os assuntos presentes na imprensa, combateram o preconceito e afirmaram um horizonte moral mais libertário. A reincidência, 50 anos depois, de elementos que parecem conter esse impulso, seja em nome do mercado, seja do conservadorismo, mostra que a história não cessa de ser escrita.
E não deixa de ser curioso que Aguinaldo Silva, um dos atores de ponta na luta contra o preconceito aos homossexuais, tenha optado por criar um personagem como Crodoaldo Valério, o Crô, em Fina estampa. Dono de todos os estereótipos que o movimento gay sempre combateu, o mordomo tem conquistado a simpatia do público, muito mais que os casais homossexuais politicamente corretos das novelas de Gilberto Braga, por exemplo. Como se vê, a contradição entre ideologia e mercado está longe de terminar.
A militância e o consumo: entrevista com Flávia Péret, jornalista e pesquisadora
A imprensa gay nasceu em época de repressão política e comportamental. Como esse contexto influiu em seu conteúdo?
É importante ressaltar que já existiam publicações gays antes de 1964. O Snob, por exemplo, que é, com o Lampião da Esquina, um dos jornais mais importantes da história do jornalismo gay no Brasil, surgiu em 1963. O pesquisador norte-americano James Green tem um estudo fundamental sobre o assunto (Além do carnaval – a homossexualidade masculina no Brasil do século XX). Ele mapeou dezenas de publicações gays, em todos os cantos do Brasil, que também já existiam antes do golpe. Sobre o contexto político e social, nós vivíamos um grande paradoxo, era um período bastante contraditório. Por um lado, a repressão política, a ditadura militar e o conservadorismo. No entanto, em várias partes do mundo ocidental – e a juventude brasileira foi bastante permeável a esses acontecimentos –, as pessoas estavam vivendo uma revolução de costumes muito forte, que chegou com mais ou menos uma década de atraso ao Brasil: a cultura hippie, o amor livre, o pacifismo e as lutas dos grupos minoritários, não só gays, mas mulheres e negros. A contracultura eclodiu nos Estados Unidos alguns anos antes e no país encontrou nos artistas brasileiros – Secos e Molhados, Dzi Croquettes, Caetano Veloso, Leila Diniz – e na imprensa alternativa bastante visibilidade. Então era algo bastante paradoxal: violento do ponto de vista político, mas com uma juventude aberta, curiosa e principalmente insubordinada às convenções sexuais.
Como essa situação se refletiu na imprensa?
A contracultura introduz um novo tom na imprensa brasileira. O Lampião, por exemplo, era um jornal supercombativo e polêmico e que marcava claramente sua postura ideológica. Eles não lutavam contra a ditadura militar apenas, como alguns alternativos da época, como o Opinião, o Pasquim, lutavam também contra o preconceito, contra a moral sexual conservadora, contra a hipocrisia sexual do brasileiro, o machismo. Era esse o contexto, a ditadura de um lado e a contracultura ou o desbunde de outro. E essa dicotomia estava ali, impressa nas páginas do jornal, as pessoas que fizeram o jornal respiravam e viviam esses dois mundos e é claro que o jornal refletia isso no seu conteúdo e na sua postura editorial: o humor, a ironia, o sarcasmo eram algumas das ferramentas de linguagem.
A mistura de militância com jornalismo repercutiu no resultado das publicações e em sua continuidade como projeto comercial?
Sim e não. Essa mistura foi superimportante para a repercussão política desses veículos, sua legitimidade e valor editorial perante a sociedade. No entanto, a continuidade não foi possível justamente porque os jornais não se sustentavam financeiramente em função de uma série de fatores. Infelizmente isso é uma constante nos casos que pesquisei, os veículos deixam de existir em função de questões financeiras, não se sustentam só com as vendas.
Por que, mesmo com o novo mercado gay, as revistas não se mantêm em circulação por muito tempo?
Por causa do preconceito. Infelizmente ainda existe muito preconceito por parte dos anunciantes. Eles não querem atrelar a marca a uma revista que traz, por exemplo, um homem seminu em poses sensuais ou que fala em assuntos como adoção ou casamento gay. Resumindo, os anunciantes evitam as polêmicas, os assuntos “delicados”... Engraçado, porque o mesmo não ocorre com as revistas de nu feminino. A Playboy tem grandes anunciantes, então está claro que não é a questão da nudez que é o tabu, é a questão da homossexualidade masculina. A falta de anunciantes inviabiliza a produção de uma revista.
Como as primeiras revistas sobreviviam?
Na década de 70 havia um jornalismo diferente, mais militante, por isso falo que a imprensa gay no Brasil se situa um pouco entre estes dois campos: a militância e o consumo. As pessoas que produziam essas publicações se reuniam em suas próprias casas, faziam jornais em mimeógrafos, colagem, xerox, iam para a rua vender, distribuíam via correio. Era um envolvimento intenso. Muitos não recebiam pelo trabalho, pelo contrário, gastavam o dinheiro que tinham para realizar o projeto de publicar um jornal ou um fanzine gay. Ou seja, elas iam driblando a falta de anunciantes. Hoje isso não é mais possível, mas por outro lado existe a internet.
A liberdade sexual no Brasil convive com fortes reações homofóbicas, em diversos setores, na política, na religião e na cultura. Que papel a imprensa tem nesse contexto?
O papel é importantíssimo, crucial, mas infelizmente enquanto a mídia se atrelar ideologicamente e economicamente a empresas e pessoas com pensamentos conservadores – principalmente os religiosos – será difícil para a imprensa atuar da forma adequada. Acho que a imprensa deveria ser mais corajosa, mais polêmica e, principalmente, mais autônoma. Muitas vezes o jornal fica em cima do muro. Às vezes o “princípio” da imparcialidade é uma desculpa para a falta de coragem de se posicionar em relação a temas polêmicos. Somos um país laico apenas na Constituição, vivemos um controle abusivo da Igreja Católica e das igrejas evangélicas. A imprensa deveria abrir mais esse debate, se posicionar efetivamente.
A ligação da imprensa gay com a pornografia interferiu no conceito que essas publicações tinham junto a um público mais amplo?
Com certeza, porque no Brasil pode-se falar das coisas até determinado ponto. Algumas pessoas até aceitam falar de homossexualidade e de direitos gays, mas mostrar um homem nu, não. Isso para mim é hipocrisia, patrulha ideológica do prazer. Durante anos o João Silvério Trevisan escreveu para a G Magazine, a Vange Leonel também. O João Silvério é para mim uma das pessoas mais importantes dentro do movimento da imprensa gay, muito mais do que o Aguinaldo Silva, aliás. Mas depois a G Magazine foi vendida e as pessoas que compraram a revista – um grande grupo internacional – não achavam que era importante ter outros assuntos além das fotos. O espaço do João Silvério foi diminuindo, diminuindo, até que ele parou de escrever. Acho isso pouco inteligente e pouco estratégico por parte dos novos donos da revista. As duas questões podem conviver.
Há alguma semelhança entre a imprensa gay e outros projetos editoriais ligados a causas minoritárias ou contra-hegemônicas?
Sim. Os movimentos contraculturais da década de 70 provocaram uma revolução na forma como determinados grupos minoritários passaram a se articular politicamente. Não só o movimento gay, mas o movimento negro, o movimento das mulheres, dos estudantes ocuparam um espaço de atuação até então inédito. Isso ocorreu porque uma série de descentramentos – quem fala muito sobre isso é o filósofo Stuart Hall – foram empreendidos no campo da política. Entre eles, o enfraquecimento de instâncias de representação social, ligadas exclusivamente ao conceito de classe. Houve também uma crescente politização da subjetividade – das identidades individuais. Ou seja, começa a surgir uma “política da diferença” nas décadas de 60 e 70. Tal deslocamento permitiu que atores sociais até então excluídos e desarticulados ampliassem o debate em torno de questões culturalmente silenciadas. No Brasil, na década de 70, além dos jornais gays tivemos jornais feministas, como o Brasil Mulher (1975 a 1980) e o Nós, Mulheres (1976 a 1978) e publicações produzidas pelo movimento negro como os Cadernos Negros (criado em 1978 e que existe até hoje), uma publicação referência no campo da literatura afro-brasileira. Acho que foi esse o espírito que uniu projetos editoriais e literários com temáticas tão diversas, dizer: existimos!
- João Paulo
Publicado originalmente no jornal Estado de Minas. Reproduzido via Conteúdo Livre
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Caso você se interesse pelo assunto e queira saber mais
Vale ler a nota do Ministério da Cultura sobre a criação do Primeiro Centro de Documentação LGBT (aqui). Aproveite para visitar o acervo digitalizado completo do histórico jornal "Lampião da Esquina", disponível para consulta aqui por iniciativa da ONG Grupo Dignidade do Paraná e com o apoio do Ministério da Cultura, por meio da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. Tweet
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