segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Imagem de Deus e Diversidade (9): o desafio da Igreja diante da diversidade do próprio Deus


Reproduzo abaixo a nona e última parte do artigo Imagem de Deus e Diversidade, publicado originalmente no nosso site. Após abordar o papel da Igreja, da Teologia e da Revelação e a impossibilidade de essas instâncias virem a esgotar Deus, na primeira parte; a mediação humana e o caráter histórico da Revelação, na segunda; a relação entre os fatos e questões contemporâneos e o entendimento humano da Revelação, na terceira; a atual relação da sociedade e da Igreja com os temas da sexualidade e da homoafetividade, na quarta; a pluralidade de visões no seio da Igreja católica e o próprio significado de “ser católico”, na quinta; a unicidade e o dinamismo de Deus, em seu caráter trinitário, na sexta;o dinamismo e a atualidade da Trindade, na sétima; e, na oitava, as consequências, para a Igreja, da sua compreensão dinâmica do Deus trinitário, concluo neste último post com uma reflexão acerca das possibilidades e desafios que se abrem para a Igreja a partir da diversidade do próprio Deus.

Assim como o Pai e o Filho sendo diversos são um no amor, também a Igreja tem como sustentáculo a comunhão, não entendida como a reunião do mesmo, do igual. Comunhão, na entrega e no acolhimento, se faz com o outro, com todo tipo de diverso. Uma comunhão que só admitisse o igual não seria comunhão, mas narcisismo.

E aqui eu quero, a partir da reflexão trinitária, tocar em mais um ponto controverso. Uma das objeções ao “amor gay” é que, sendo o amor ao "igual", seria fechado em si mesmo, uma atitude meramente egocêntrica e, por isso, merecedora da linda expressão cunhada tantas vezes nos documentos oficiais: um ato intrinsecamente desordenado.

Aqui a principal questão é a maneira como se compreende o ser humano. Dissemos que a noção de Deus como um princípio homogêneo, absoluto e, no fundo, sempre igual a si mesmo constrói um mundo de objetividades, muito claro e preciso.

Assim, poderíamos dizer o que o ser humano é, explicá-lo a partir daquilo que o constitui: ser homem, ser mulher, ser racional. Com base nestas informações e em tantas outras é que se definiam antigamente os papéis, a missão de alguém no mundo. Por exemplo, na Idade Média, se você fosse homem e o primogênito cabia a você a herança paterna, se fosse primogênita, sendo mulher, deveria se casar antes de suas irmãs mais novas. Ou seja, as características de cada pessoa definiriam sua missão e identidade no mundo. É mais ou menos esta concepção que está por trás da chamada “lei natural”, visão fixista do ser humano que serve de base para os juízos morais da Igreja. Haveria determinadas características no ser humano que definiriam para ele as atitudes a tomar, a maneira de viver. Este “agir de acordo com aquilo que se é” (e o que se é está definido na lei natural) não pode ser “negociável”, mas precisa ser acolhido como algo definitivo, como, por exemplo, a identidade sexual masculina ou feminina, Se você é homem, é feito para uma mulher e o contrário, no caso da mulher, simples e ingênuo assim.

Com novas formas de compreender o ser humano e a vida, como por exemplo, o inconsciente de Freud – que nos mostrou não sermos o reino da objetividade racional que supúnhamos – e com o aparecer de outras culturas que pensam a realidade de forma bastante diversa da ocidental-cristã, fomos nos dando conta que talvez muitas das afirmações que constituem a nossa visão de mundo, não são absolutas, mas foram sendo construídas por uma série de processos históricos. Vamos nos dando conta que o que significa ser homem ou mulher não está armazenado, marcado de forma definitiva e natural em cada um de nós, mas é a conseqüência de um acúmulo de compreensões que, por uma razão ou outra, prevaleceram sobre as demais. Isto nos ajuda a tomar certa distância dos “absolutos” quando estes são muitos detalhados e rigidamente definidos.

Além disso, será que o fato de partilharmos algumas características em comum que nos identificam como ser humano do sexo masculino e feminino nos torna realmente iguais? Esta compreensão pressupõe uma maneira de pensar ainda muito ligada a definições. Se um ser humano é do sexo masculino e se chama João ou Carlos, ou do sexo feminino, chamando-se Patrícia ou Clara, o que eles têm em comum, ser humano de determinado gênero sexual, é o bastante para defini-los como iguais?

Dissemos antes que as pessoas divinas não podem ser compreendidas como núcleos isolados que em um segundo momento se relacionam. Guardadas as devidas proporções, bem desproporcionais quando “comparamos” Deus e o ser humano, o mesmo se pode afirmar a nosso respeito. Há sim, determinadas características que nos são comuns, mas jamais seriam suficientes para nos tornar iguais. As experiências por que passamos, as múltiplas relações que experimentamos durante a vida e a maneira como internamente recebemos tudo isto formam muito mais a nossa identidade específica do que definições gerais. Não há um ser humano igual a qualquer outro. A história das nossas relações nos forja de maneira única e irrepetível. Por isso, só alguém, pessoa ou instituição, que não estivesse atenta à dinâmica da vida poderia entender o “amor gay” como um fechamento egoísta no igual, no “em si mesmo”.

Mas o melhor de tudo é que não nos pomos a desconfiar do quão carregado de pré-definições e acúmulos meramente históricos é essa tal de “lei natural” por estarmos perdendo a fé, ou nos afastando da Igreja, ou por uma rebeldia infantil. A nossa fé adulta em Deus nos recorda que, antes de ter uma identidade fixa de “Pai” ou de “Filho” ou “Espírito”, cada uma das pessoas é ela própria porque se abriu, se pôs em relação com o diverso de si mesma. Ou seja, se a comunhão pressupõe a diversidade, esta só se realiza quando não despejamos uma série de pré-definições (pré-conceitos?) sobre aquilo que aparece como diferente, mas temos uma postura humilde diante de Deus, de, pelo menos, ouvir este “diverso de mim” que se propõe a dialogar.

Até bem pouco tempo atrás, a humanidade era pensada como sendo toda heterossexual. Esta era a regra. Não queremos que a Igreja acolha uma mudança tão abrupta e que ainda está se fazendo à base de muita luta e tantos conflitos. Seria desejar demais. Queremos apenas que ela não se negue ao diálogo, não rejeite a diversidade só porque não é o mesmo, o igual. Justamente porque, sendo um no amor, Deus é uma unicidade heterogênea que se realiza na diferença do Pai e do Filho.

Aqui penso Igreja não só, e nem principalmente como Magistério, mas em cada um que segue a Jesus Cristo e procura viver aqui na terra esta comunhão amorosa com os outros, cuja plenitude esperamos ser o céu. Penso no rosto de cada um pessoalmente, a face verdadeira da Igreja. Na época de Jesus, quem diria que o rosto dos leprosos, prostitutas e pecadores públicos (uma espécie de gente “intrinsecamente má”) seria o mais procurado por Deus? Quem da instituição religiosa contemporânea a Jesus perceberia que seriam essas pessoas o sinal do amor gratuito e universal do Pai que se constitui na grande boa-nova do reino? E, hoje? Que faces e rostos? De que excluídos e marginalizados Deus hoje está à procura?

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