Escultura: Jennifer Collier
Surpreendentemente, países como Argentina, Espanha e África do Sul superam os EUA. Em termos de geopolítica e de casamentos gays, nas ex-ditaduras o "sim" é mais fácil.
A reportagem é de Angelo Aquaro, publicada no jornal La Repubblica, 10-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.
Há uma linha que une os mártires da Praça de Maio e os resistente gays de meio mundo? O que liga a África do Sul de Nelson Mandela ao Massachusetts daquele Mitt Romney que visa à Casa Branca? E Barack Obama realmente tem algo a aprender com o ex-primeiro-ministro português José Sócrates? Tudo o que você pensava saber até agora sobre os casamentos gays é falso. Ou pelo menos discutível.
Não é verdade que o fatídico "sim" aos homossexuais seja uma meta das nações reconhecidas como socialmente mais avançadas. Ao contrário. A geopolítica dos casamentos gays começa em Lisboa. O primeiro colunista abertamente gay do New York Times – Frank Bruni – foi até lá para descobrir por que esse pequeno país à beira do precipício (também econômico) da Europa conseguiu acertar um alvo até agora difícil para um gigante como os EUA, onde Barack Obama brinca com os seus partidários gays ("Encontrei a líder de vocês: Lady Gaga!"), mas ainda não se pronunciou a favor do casamento, fazendo, assim, com que o país escolha desordenadamente: de Massachusetts, em que se casa por decisão da Suprema Corte (e para a raiva do ex-governador mórmon Romney) até Nova York, que neste mês celebrou os primeiros 100 dias do "sim" aos gays.
Mas por que Portugal? Lisboa é a última capital a ter aprovado uma lei no ano passado. E, além do mais, é um país católico, que se poderia imaginar a anos luz daquela Holanda que escolheu a tolerância por princípio de Estado, das vitrines já turísticas aos cafés de maconha. E que, pela primeira vez no mundo, instituiu, há dez anos, o casamento gay. Desde então, só nove foram os Estados em que o casamento gay foi admitido. Mas aqui vêm as outras surpresas.
Os países que, como a Holanda, gozam de uma tradição de tolerância são um quarteto: Noruega, Suécia, Islândia e Canadá. Mas e os outros? África do Sul, Espanha, Portugal e Argentina. A explicação é esboçada pelo estudioso Evan Wolfson, do Freedom for Marry. "Trata-se de países onde a democracia e o respeito pela lei foram negados durante anos. E onde a sociedade civil lutou fortemente para reconquistá-los". Da Argentina da ditadura de Videla à Espanha do pós-Franco. Da África do Sul do apartheid ao Portugal livre da Revolução dos Cravos.
Mas não só. O ex-primeiro-ministro português Sócrates reconhece: "A escolha da Espanha foi muito importante para nós". A primavera (já murcha) de Zapatero teria servido como estímulo para o vizinho de península, mas também para a América Latina, que continua olhando com amor e rivalidade para a pátria-mãe. E não é por acaso que o próximo país na lista do reconhecimento ainda é de marca espanhola: o Uruguai.
A hipótese que cruza países saídos da ditadura e direitos gays é cativante. Mas há quem destaque os seus limites. Uma jurista gay e contracorrente, por exemplo, é Katherine M. Franke. A professora leciona na Universidade de Columbia e em seu livro The politics of same sex marriage politics já havia destacado alguns riscos, além de conquistas civis. Inclinando-se sobre a instituição burguesa do casamento, os homossexuais não só venderiam a sua alma ao diabo do conformismo, mas também sancionaram a enésima desigualdade social. Ou seja, o reconhecimento dos direitos somente sob prévio contrato - eu respeito você como gay – mas se você se casar.
E pensar que as uniões que hoje dividem afundam suas raízes nos séculos. Alan Tullchin, professor da Universidade da Pensilvânia, encontrou na França de 600 anos atrás aqueles contratos de "fraternização" (com a promessa de compartilhar "un pain, un vin et une bourse"), que serviam para repassar a propriedade em caso de morte do companheiro. Sem falar dos piratas da Ilha da Tartaruga, que se casavam entre si para permitir que os marinheiros – matelot – dividissem os tesouros.
A propósito: exatamente de matelot é que vem aquele mate, que, em inglês, designa o parceiro sexual, masculino ou feminino - ou ambos.
* * *
Em tempo: recebemos via twitter na semana passada, de nosso amigo @realfpalhano, o link para um artigo sobre a homossexualidade na Idade Média, na Espanha. E o artigo começa: "Chamavam-se Pedro Díaz e Muño Vandilaz os dois homens que, em 16 de abril de 1061, protagonizaram o primeiro matrimônio homossexual de que se tem registro na Galícia, e um dos primeiros da Europa." Vale a leitura, aqui. Tweet
4 comentários:
Oi, Querid@s!
Infelizmente, me parece que esse conservadorismo tipo "você pode casar, mas tem que ser gay" já impregna também aqui e no mundo todo, até mesmo os países outrora acolhedores. Sim, foi feito o "pacto com o diabo do conservadorismo". Tudo o que tínhamos de transgressor na Cultura Gay, vem sendo duramente criticado: você tem que ser discreto, masculino, bem vestido, calmo, viril. Para mim, novas prisões e tão sofredoras quanto as de outrora...
Beijo,
Ricardo Aguieiras
aguieiras2002@yahoo.com.br
Oi, Ricardo,
isso tem a ver com aquela questão que você tinha levantado a respeito do texto "Não é preciso ser diferente para ser gay", lembra? Esse texto foi muito bem respondido por "Não é preciso ser diferente para ser gay, mas podemos ser", que não lembro agora se foi indicação sua...
Sim, talvez uma das maiores contribuições - e "agressões", e causas de incômodo - de quem escapa aos padrões da normatividade é justamente o fato de, por escapar, colocá-los em xeque. Mostrar que é possível ser diferente. Mostrar que não precisa ficar preso dentro daquela caixa. E mostrar isso incomoda, né? É natural que "o sistema" tenda a impor novas normatizações à medida que as primeiras começam a ser rompidas.
Os jogos de poder sociais se utilizam dessas normatividades pra aprisionar todo mundo, e cada vez mais penso que os "opressores" são tão vítimas desse sistema e tão aprisionados quanto os "oprimidos". Veja só que prisão não é para os homens héteros super machos que não podem ser frágeis, não podem não ser viris, segundo a lógica do "homem não chora", né?
Do mesmo modo, ao nos apresentarmos como cristãos católicos gays, incomodamos muito muita gente, sobretudo aqueles que precisam acreditar em um Deus carrancudo, sacrificante, irado e normatizador... segundo essa lógica (perversa), é reconfortante saber que "os outros" estão do lado errado, porque isso garante que "eu" esteja do lado certo... Cruel, não? Para eu ganhar, preciso torcer para o outro perder... Nada mais distante da lógica subversiva do Evangelho de Cristo. Enfim, é uma longa e boa conversa. :-)
Beijos!
Cris
Equipe DC
Cris, ótimo! Adorei teu comentário. Acho que eu - apesar da idade... risos - ainda preciso aprender muito. E vocês, do Diversidade Católica têm me dado umas aulinhas boas e nem sabem disso. Sou grato!
Teu comentário traz um dado importante, de como o opressor também pode ser vítima dentro do seu próprio discurso. Dor. Não sei muito o que fazer, mas acho que refletir também é uma forma de lutar. Beijo, Cris!
"Refletir também é uma forma de lutar"... Estou pensando nisso há 2 dias, rssss...
Às vezes, sentir; ser; estar, simplesmente; respirar - são tão imprescindíveis quanto o pensar, o fazer, o lutar... não?
Será que tudo é luta, simplesmente? Ou será que há algo que vai além de estar lutando o tempo todo? Não seremos mais que isso? Não sei... :-)
Bjo imenso.
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