quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Missa cantada

Ilustração: Yau Hoong Tang

O autor, não-religioso, que se diz "tantas vezes revoltado com o que vejo de absurdos na doutrina católica", viu-se um dia, a convite de um amigo, assistindo a uma certa missa. Mas algo naquela igreja, que a princípio lhe parecia igual a todas as outras - principalmente, igual às suas imagens preconcebidas -, algo naquele momento o surpreende. E ele se pergunta: "Onde eu estava? Num reduto ultraconservador? Mas a retórica do padre não servia a fins sinistros"...

Uma igreja pode ser diferente da outra, mas os bancos são sempre iguais. Têm aquele apoiozinho na frente para que os fiéis se ajoelhem. Até aí, tudo certo.

Mas nem sempre é assim. Na missa, diante do altar, a pessoa pode ficar em pé, atenta àquilo que está acontecendo, e não de joelhos, numa oração interior.

Esta posição, de joelhos, na verdade, é adequada diante do sacrário: o armariozinho onde ficam guardadas as hóstias. E o ideal, para prosseguir no assunto, é que o sacrário não fique atrás do altar. Um amigo católico ia me explicando essa e outras sutilezas.

Estávamos, no último domingo, na capela do Pátio do Colégio. É uma construção arejada e branca, que reproduz, em linguagem moderna, as proporções do antigo edifício jesuíta.

Lá, o sacrário fica do lado esquerdo - e nos bancos não existe o tal do genuflexório. A pia batismal, toda de pedra, prevê que a criança seja mergulhada de corpo inteiro na água benta. A convite do amigo, fui ao Pátio do Colégio assistir à missa das 10h. Uma das "melhores missas" de São Paulo, segundo quem entende da coisa.

É cantada, com órgão e coral. A entrada do padre e de seus ajudantes (uns dez, se contei bem) se faz com incenso e pompa. À frente, um senhor magro, longas roupas, ostentava a cruz; outro veio e trazia, braços ao alto, uma Bíblia encadernada em metal e pedrarias. Será o padre, pensei. Não era: esse veio depois, numa batina verde e amarela, um bocado vistosa para sua aparência, terrível à primeira vista.

Quando digo missa cantada, não é somente porque o coro já começa a cerimônia com seus "Kyries" e "Glórias", que, aliás, não se estendem além da conta.

O próprio padre passa a maior parte do tempo vocalizando aquela reza meio cantada que ainda associamos à religião tradicional. Até mesmo o trecho do Evangelho daquele dia é "entoado" como uma oração.

Outro detalhe: o padre, para ler o Evangelho, vai até uma pequena sacada (será o famoso púlpito?) e lê o texto lá de cima. A razão, explica o amigo, é que nas igrejas, até a Idade Média, o lugar da leitura ficava sempre no meio do fiéis, para mostrar que Deus estava entre eles.

Careca, meio baixo, uma barba preta de poucos amigos, o padre pareceu, aos meus olhos ímpios, quase um sósia do Zé do Caixão. Feita a leitura cantada, ele voltou para o altar e começou a falar de improviso.

Foi um espetáculo. Hoje em dia, nem mesmo os políticos mais astutos dominam a arte da oratória. Sem abandonar certa dicção eclesial, o padre Carlos Alberto Contieri ia do grave ao agudo, acumulava nuvens escuras e deixava em seguida passar um raio de luz. Por vezes, um laivo de ironia: uma pergunta que ele largava no ar e depois colhia no exato instante em que ameaçava rolar pelo chão.

Havia, pensei, algo de assustador em tanto poder retórico - na segurança com que o padre dominava seu instrumento, como o órgão da igreja. O órgão, aliás, acaba de ser reformado e conta agora com cerca de mil tubos. "O que são mil tubos", perguntou o padre, num meandro de humildade, "perto da grandiosidade de tantos outros órgãos maiores?". Parou um pouco. "Mas o nosso órgão, pelo menos, toca."

Sim, pensei. E como toca! O incenso, a música, a barba preta, um trecho do profeta Ezequiel, o trecho correspondente de são Mateus falando de ímpios e pecadores...
Onde eu estava? Num reduto ultraconservador? Mas a retórica do padre não servia a fins sinistros. Transmitia com clareza uma ideia nova para mim. A homilia era sobre o perdão.

Sabemos, é claro, que devemos perdoar a quem nos ofendeu etc. etc. Coisa que não faço, aliás. Mesmo se fizesse, disse o padre, não seria tão simples assim. Não se trata apenas de aceitar as desculpas que nos pedem. "Ah, está desculpado, passe bem." É mais difícil. Trata-se de oferecer o perdão - a iniciativa deve vir do ofendido, não do ofensor. Outra coisa, diz o padre, não faz Deus aos pecadores.

Tantas vezes revoltado com o que vejo de absurdos na doutrina católica, olhei mansamente para as costas do meu amigo religioso, sentado mais à frente. "Ego te absolvo", bom amigo. Depois de uma missa tão bonita e inteligente, vocês estão desculpados. Até a próxima.

- Marcelo Coelho
Publicado na Folha de S. Paulo em 07/09/2011
Reproduzido via Conteúdo Livre

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