sexta-feira, 15 de julho de 2011

A necessidade de Deus


Deus é, sim, desejável, mas também é devastador. Porque o homem só pode se realizar aceitando ser devastado nas suas falaciosas seguranças.

A opinião é de Gaston Piétri, padre francês de Ajaccio, publicada no jornal La Croix, 03-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


Em outubro de 2010, os "estados gerais do cristianismo", por iniciativa da revista La Vie, colocavam esta pergunta: "A nossa época tem necessidade de Deus?". Voltava-me à mente a afirmação de Dietrich Bonhoeffer: "O Deus que nos deixa viver no mundo sem a hipótese de trabalho 'Deus' é aquele diante do qual nós estamos continuamente. Diante de Deus e com Deus vivemos sem Deus".

Podemos entender dessas palavras que Bonhoeffer nos adverte a não ter que esperar "injeções" de poder sobrenatural nos campos onde somos chamados sobretudo a fazer o nosso trabalho de homens responsáveis. Essa necessidade só poderia nos enganar tanto sobre Deus, quanto sobre a nossa vocação de homens. Certamente, a palavra "necessidade" é ambígua. Não podemos esperar respostas peremptórias da parte de Deus só para nos dispensar de procurá-las. Mas é verdade que há situações em que, para chegar ao fundo, experimentamos como a humanidade tem o fòlego curto. Incontestavelmente, a nossa época sente isso mais do que outras, quando deplora o desaparecimento de pontos de referência, quando toca com o dedo a falta de certezas.

A política, no mesmo momento em que vê se restringir a sua capacidade de decisão com relação à economia, engloba, no seu próprio âmbito, a causa do poder que nos foi dado por extraordinários progressos tecnológicos, problemas que, até as últimas décadas, pouco tinham a ver com os responsáveis políticos. De fato, trata-se da vida humana. O seu início e o seu fim estão, mais do que nunca, em nossas mãos. Como padronizar os instrumentos excepcionais que nos são fornecidos? Quem poderia dar ao homem a sabedoria e a lucidez suficientes para decidir nesses campos, sem comprometer gravemente o futuro da nossa sociedade? O que fazer, para continuarmos dignos da condição humana, quando se pode decidir em detalhes sobre as modalidades da vinda ao mundo, sobre as condições do prolongamento ou da abreviação da vida deteriorada pela doença?

Desenvolver instrumentos tão aperfeiçoados é uma coisa, que, além disso, compete legitimamente ao poder do homem mediante a pesquisa científica. Utilizá-los segundo o verdadeiro bem do homem é outra coisa. Independentemente da confiança que possamos ter na razão humana, como não como admitir que, sobre tais assuntos, a razão está colocada a uma dura prova? Diante de desafios tão cruciais, o recurso de Deus volta a nos aparecer como uma íntima necessidade. Quem ousaria tratar com leviandade essa necessidade do homem posto diante dos seus próprios limites? Mesmo que devamos, segundo a recomendação de Dietrich Bonhoeffer, guardar-nos, a todos os custos, de fazer de Deus o "tapa-buracos" das nossas insuficiências.

Encarregamo-nos de nós mesmos e ir até o extremos dos nossos recursos é, ao mesmo tempo, a nossa honra de homens e a expectativa de Deus com relação a nós. Se ele se cala, ele que nos disse tudo em seu Filho, é para não tomar a palavra no nosso lugar. Mas o convite a "viver sem Deus", como entendia o crente Dietrich Bonhoeffer, é acompanhado por uma surda inquietação quando os problemas de hoje se tornam tremendos. Os fiéis são então obrigados a ouvir a voz de alguns daqueles que apagaram Deus decisivamente do seu horizonte ou jamais sequer imaginaram encontrá-lo. Não fogem da inquietação ou não buscam acalmá-la por meio de Deus.

A advertência de Nietzsche merece ser ouvida: "Se não fazemos da morte de Deus uma renúncia grandiosa e uma contínua vitória sobre nós mesmos, deveremos pagar caro por essa perda". É porque Nietzsche via que a sombra de Deus permanecia nas mentes que deveriam se dar conta da sua morte. Mais perto de nós, Marcel Gauchet, no final do seu livro "O desencantamento do mundo" (1985) escrevia, como em confidência: "O declínio da religião se paga com a dificuldade de ser nós mesmos". Ele definia as nossas sociedades como "psiquicamente estressantes". A seus olhos, o compromisso grave é ter que elaborar as respostas por nossa conta, enquanto a fé podia fornecê-las no interior de um sistema tranquilizador.

Somos crentes, mas não dispomos de um manual com as soluções. O desconforto também faça parte do nosso destino. Então, qual é a nossa consolação? Essa palavra é mais ambígua que existe, mesmo que pertence à nossa tradição espiritual. Na nossa felicidade de acreditar, há a experiência de uma mensagem que, segundo a expressão do Concílio Vaticano II, está "em harmonia com as aspirações mais secretas do coração humano" (Gaudium et Spes, n. 21). Como eco à aspiração que sobe da melhor parte do nosso espírito, há a certeza de uma nobreza inalienável do nosso destino. Deus é, sim, desejável, mas também é devastador. Porque o homem só pode se realizar aceitando ser devastado nas suas falaciosas seguranças.

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