sexta-feira, 8 de julho de 2011

A leitura seletiva da Bíblia e suas consequências





Só interpretação fundamentalista do texto religioso cristão pode explicar
a postura de certos religiosos, diz especialista

30/06/2011

Joana Tavares

da Redação


Enquanto representantes conservadores das bancadas evangélica e católica protestam contra a ampliação dos direitos da população LGBT, estudiosos de teologia afirmam que o Estado deve separar a dimensão religiosa e civil, garantindo o bem comum. Recentemente, a Câmara dos Deputados indeferiu um Projeto de Decreto Legislativo, proposto pela Frente Parlamentar Evangélica, que visava derrubar a decisão do STF de legalizar as uniões estáveis homoafetivas.

“Em geral, os fundamentalistas assumem postura seletiva na leitura do texto bíblico: escolhem os versículos que lhes interessam, apegam-se a eles e olvidam tudo mais. A mesma Bíblia que tem palavras fortes contra o homossexualismo e o condena, ensina o amor ao próximo”, aponta o reitor da Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia (Faje), de Belo Horizonte (MG), padre Jaldemir Vitório, doutor em Exegese Bíblica. Ele aponta ainda que os direitos da população LGBT devem ser respeitados. “O Estado não pode se identificar com os interesses de grupos particulares, religiosos ou não, nem se submeter a eles. Visa ao bem comum e ao interesse de todos e não a este ou aquele grupo”, afirma.

Brasil de Fato – Como o senhor vê a questão dos direitos da população LGBT e das políticas para garantí-los, como a decisão do STF de reconhecer as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo?

Jaldemir Vitório – A população LGBT é formada por cidadãos e cidadãs cujos direitos devem ser respeitados. Se se sente ameaçada, deverá ser protegida pelo Estado. Jamais poderá ser deixada à própria sorte, com o risco de ser vítima da intransigência de grupos intolerantes. Nas últimas décadas, tem buscado reconhecimento, lutando para garantir seu espaço no amplo espectro da realidade social, política, econômica, religiosa e, também, legal. Nesse sentido, a decisão do STF vai ao encontro dos anseios dos LGBT. Cabe perguntar se o STF é a instância competente para dirimir pendências no campo da união estável homoafetiva. Quanto à política do Estado, é preciso considerá-la sob o aspecto ético-cultural. É função do Estado promover políticas que ajudem os cidadãos a viver melhor, de modo que todo o corpo social cresça e se desenvolva de maneira harmônica, sem privilegiados e preteridos. Assim, a política do governo deve ser efetivada, tendo em vista a superação da discriminação, do preconceito e do ódio contra os LGBT. Por outro lado, é preciso considerar um dado cultural brasileiro, no tocante à constituição da família. Se se mantiver a distinção entre matrimônio e união estável, a decisão do STF poderá ter maior acolhida. Se houver equiparação, a sensibilidade cultural poderá ser afetada. Larga faixa da sociedade brasileira não está madura para pensar, com serenidade, a questão.

Qual sua opinião em relação ao programa “Escola sem homofobia”?

Seria bom que o governo, muito antes de levar adiante essa campanha, promovesse outras, do tipo “Escola sem professores mal remunerados”. Ou promovesse campanhas que tocassem na raiz da homofobia, ou seja, a intolerância e a violência que tomaram conta da sociedade,a ponto de escapar ao controle do Estado. E, em muitas circunstâncias, terem agentes do Estado como seus causadores. Não só os homossexuais estão com medo e vivem acuados. A “fobia” é uma espada de Dâmocles que pende sobre a cabeça da sociedade em geral. Cabe ao Estado, em primeiro lugar, enfrentar essa grave situação.

Como o senhor vê a polêmica que se deu com alguns congressistas religiosos que são contra a implementação de políticas públicas voltadas para os LGBT?

Por um lado, a moral dos grupos religiosos vale, em primeiro lugar, para seus membros. Quando pretendem impô-la ao conjunto da sociedade, extrapolam seus direitos. O Estado não pode se identificar com os interesses de grupos particulares, religiosos ou não, nem se submeter a eles. Visa ao bem comum e ao interesse de todos e não a este ou aquele grupo. Por outro lado, as igrejas têm o direito de participar do debate democrático, defendendo seus pontos de vista, dialogando e interagindo com a variada gama de entidades e movimentos que compõem o tecido social. Entretanto, julgando-se revestidas de autoridade divina, podem cair na tentação de se considerarem com acesso direto à verdade. E, com isso, quererem impor seus pontos de vista. Tal equívoco mostrou-se, historicamente, inconveniente. Articuladas em contexto democrático, as igrejas devem aprender a arte do diálogo franco e aberto, com a possibilidade de prevalecerem pontos de vista contrários aos seus. Tenho, porém, uma crítica a fazer aos congressistas religiosos. Em geral, são pessoas de duvidosa qualidade política, articulados em torno de interesses corporativistas ligados às respectivas igrejas, quando não de baixa estatura moral, embora assumam posturas moralistas. Quiçá cumprissem melhor seu papel de religiosos se se lançassem na defesa dos pobres e se empenhassem na promulgação de leis que beneficiassem as parcelas desfavorecidas da população.

Há algum argumento bíblico que justifique a discriminação contra os homossexuais?

Só uma leitura fundamentalista e anacrônica da Bíblia pode fundamentar a postura de certos religiosos, que recorrem a ela, a cada passo, para justificar seus pontos de vista. A sociedade e a cultura da época eram muito distintas da nossa. Por isso, antes de se afirmar que a Bíblia ensina isso ou aquilo para os fi éis de hoje, é preciso fazer um longo percurso hermenêutico. São muitas as perguntas a serem, previamente, respondidas:quando o texto foi escrito? Em que contexto histórico, social, político, religioso etc.? O texto bíblico não tem um sentido imediato, à mão do leitor. Em geral, os fundamentalistas assumem postura seletiva na leitura do texto bíblico: escolhe mos versículos que lhes interessam, apegam-se a eles e olvidam tudo mais. A mesma Bíblia que tem palavras fortes contra o homossexualismo e o condena (cf. Levítico 18,22; 20,13) ensina o amor ao próximo (cf. João 15,12). Quem, hoje, em nome da Bíblia, insiste em condenar os homossexuais ao fogo do inferno, deve considerar com atenção as palavras de Jesus: “Não julgueis e não sereis julgados. Porque do mesmo modo que julgardes, sereis também vós julgados e com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos” (Mt 7,1-2). Com a mesma Bíblia na mão, é possível encontrar muitos textos para condenar os juízes dos homossexuais. Portanto, muito cuidado ao se servir da Bíblia no embate em torno de questões polêmicas, para as quais os consensos estão longe de serem encontrados.

Padre Jaldemir Vitório

é doutor em Exegese Bíblica e reitor da FaculdadeJesuítica de Filosofia e Teologia (Faje), de Belo Horizonte (MG).




Fonte: Brasil de Fato

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