quarta-feira, 25 de maio de 2011

Des-costura

Ilustração: --neve

As coisas não são, elas se fazem. No princípio era o vácuo. E, então, alguém inventou: homem, mulher, moral, sexo, normal, correto. A partir do primeiro contorno rarefeito de cada uma destas coisas se viu que era necessário mais formas, definir, moldar: mulher-dócil-materna, homem-ativo-provedor, sexo-homem/mulher; a cada laço se reforçava como o “é assim” o que se inventava apenas a cada vez que se contavam casos, histórias, teorias científicas, narrativas sagradas. Cada laço, moldando, ajustando, formando o que, depois, se vê como a identidade sólida e perene de algo. Porque tudo é performance.

Formar-se per, através de, insistindo-se perenemente, e em laços sempre outros a respeito do mesmo. Costura-se, amarra-se de todas as maneiras possíveis, a única exigência é que o tecido seja inteiro, de alto a baixo sem linhas, junturas ou justaposições. É preciso que a costura se perca para deixar que as coisas apenas “sejam”, numa identidade que se produz a cada instante e instância.

Daí o medo dos incautos. Como desafiar um mundo de certezas? Ser homem e gostar de homem? Ser mulher e não jogar as tranças esperando alguma espécie de salvação? Os covardes dirão que é tudo muito difícil e cruel, que as coisas são como são e ponto. O que eles não sabem, ou não querem enxergar, é que as coisas não são, elas se fazem.

A natureza inscrita numa espécie de código imutável a se repetir perenemente, a sociedade como instância que precisa de bases sólidas e homogêneas, protegidas como o interesse maior da humanidade, sancionada pela benção divina que criou homem e mulher. Filmes, livros, discos, “desde que o mundo é mundo é assim” transmitem certezas absolutas e contam com manicómios, exorcismos, alguma permissão temporária no carnaval, normal/anormal e lâmpadas na cara em plena avenida para ajustar os desviantes. Tudo para que o que se faz reiteradamente como condição de se manter, desponte apenas como a obviedade do “desde sempre foi assim”.

O que não se percebeu de antemão é que, cada laço que afirma não se encaixa completamente no anterior, a costura não é perfeita, há espaços, vazios, volumes e fendas não previstas. Porque sendo performance, ser homem e mulher, nunca pode ser exatamente a mesma coisa. Não sabiam disso, não contavam comigo e tantos outros.

Aqui e ali, alargamos as brechas, vemos oportunidades na folga de laços, atrapalhamos, com apurado senso de espetáculo, o fazer-se repetitivo da trama. Retiramos da invisível sombra, o tecer constante do “normal”. Ser homem, ser mulher não é de forma alguma destino natural, mas é o que se inventa disso, e nisso falaremos mais e mais, para escândalo dos opressores e glória dos que sabem ser a vida o que, afinal de contas, importa. Então porque não fazê-la mais ampla e colorida?

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