terça-feira, 19 de abril de 2011

Os problemas de governo da Igreja


Reproduzimos aqui um artigo inédito de José Comblin, recentemente falecido, publicado pelo IHU.

Ele foi escrito "na última semana que esteve entre nós", informou Monica Maria Muggler, ao enviar o artigo ao site. Segundo Monica, "considerações que achou por bem fazer, a partir da repercussão de entrevistas recentes que havia dado sobre questões eclesiais. Enviou a algumas pessoas e deixou para divulgar mais tarde, pois considerava que o assunto ainda não está na ordem do dia em nosso continente, embora na Europa já se começa a falar a respeito".

Eis o artigo.

“Ouço a solicitação que me é dirigida para encontrar uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova”

- Joao Paulo II, Ut unum sint, 1995, n.95

Na encíclica Ut unum sint o Papa João Paulo II aludiu a um problema fundamental mostrando que estava bem consciente. Já Paulo VI havia manifestado que estava preocupado. Mas nada saiu dessas preocupações que hoje em dia são preocupações da Igreja inteira. O governo central da Igreja não funciona bem. Em lugar de adaptar a Igreja ao mundo atual, paralisa a Igreja no seu passado. Muitas coisas deviam ser reformadas na Igreja para responder às necessidades dos tempos. Mas a máquina de governo impede toda mudança. O sistema impede a mudança. Ninguém tem poder para tomar decisões. O Papa não tem condições para tomar as decisões necessárias. Eis algumas expressões dessa situação do governo.

1. A eleição do Papa

Primeiro, os eleitores. O sistema atual foi feito quando o Papa fazia poucas intervenções fora da diocese de Roma e das dioceses vizinhas. Os cardeais eram o clero de Roma e das cidades vizinhas. Hoje em dia, o Papa decide tudo o que acontece no mundo inteiro e tem uma grande administração com milhares de funcionários. O Papa devia ser eleito por uma representação de todos os continentes. Os cardeais nem sequer representam as Igrejas dos seus países porque foram escolhidos pelo próprio Papa e não representam nenhuma Igreja particular.

Se o Papa fosse eleito por uma verdadeira representação da Igreja universal, teria mais força onde se apoiar contra o poder da Cúria. Agora ele depende da Cúria. Eleito pela Igreja poderia invocar o peso da Igreja contra o peso da administração central. Os presidentes das conferencias episcopais, por exemplo, teriam mais caráter de representatividade. Além disso, muitos cardeais são funcionários da Cúria e não representam nenhuma Igreja porque são funcionários da administração.

Em segundo lugar, o modo da eleição. Há dois tipos de eleitores. Há os cardeais da Cúria. Estes se conhecem e formam círculos secretos. Esses são os que intrigam para preparar a eleição. Formam partidos e trabalham na sombra para que o seu partido possa ganhar. O que aconteceu nas últimas eleições , é edificante Depois, há os cardeais de fora. Esses não se conhecem, Chegam para o conclave e não se conhecem. Não sabem quais são as intrigas que estão fazendo os cardeais da Cúria (com os seus conselheiros!). Em cada país a Conferência episcopal exorta os católicos para conhecer bem os candidatos e os seus programas de tal maneira que possam fazer um voto consciente. Mas os cardeais não têm condições de fazer um voto consciente porque não conhecem os candidatos, nem os seus programas.

Depois da eleição de João Paulo II perguntamos ao cardeal Silva de Santiago de Chile porque tinha votado no cardeal polonês. Ele disse: ”Nós não o conhecíamos, mas disseram-nos que era um bom candidato e então votamos nele”. Se o paroquiano explicasse assim o seu voto ao seu vigário, este lhe diria que é um inconsciente.

Sabemos quem foi quem disse que era um bom candidato. Foi o cardeal Koenig, arcebispo de Viena, na Áustria. Koenig tinha grande fama de homem de grande projeção intelectual e de grande prestigio internacional. Mas estava muito ligado ao Opus Dei, que tinha feito uma campanha eleitoral muito ativa. Sabemos que foi ele, porque ele mesmo o disse antes de morrer, e disse que estava muito arrependido de ter feito isso. O cardeal Silva não sabia que o cardeal polonês era adversário do Concílio Vaticano II.

Os eleitores devem ter tempo para se conhecer e saber quais são os candidatos apresentados pelos colegas e quais são os programas dos candidatos. Se isso se exige por eleições comuns, poderia pensar-se que na Igreja essa exigência de direito natural vale com mais força. Na prática o quer acontece é que os cardeais fazem um voto de confiança, exatamente o que se denuncia em todas as eleições políticas. O votante não sabe o que quer o seu candidato. Ainda bem que o povo católico não sabe como se faz essa eleição, porque ficaria envergonhado. Compreendo que os bispos guardem silêncio sobre isso. Mas essa situação não pode continuar. O pior é quando se diz que quem decide a eleição é o Espírito Santo - quando se sabe muito bem o que aconteceu e não houve nenhum momento de revelação do Espírito Santo. Porque enganar os católicos como se fossem todos infantis?

2. A descentralização

Uma administração centralizada inevitavelmente quer defender os seus poderes e aumentá-los. O que busca a administração central é em primeiro lugar o seu próprio bem, ou seja, o aumento do seu poder: fazer mais leis, mais obrigações, mais formulários, mais papéis impressos, mais exigências.

Na Igreja não é diferente. O que busca a administração é assegurar mais poder. O bem da Igreja é um pretexto. Isso é parte da natureza humana, e, se todos os funcionários da Cúria fossem santos o problema continuaria. Seria pior porque se fossem mais santos, queriam trabalhar mais ainda, e fazer mais imposições ainda. O principio de subsidiariedade vale para todos os seres humanos e quando um sacerdote ou um bispo é ordenado a sua natureza humana não muda.Precisa descentralizar: as nomeações episcopais,o direito canônico, a liturgia, a formação do clero, a organização do ensino, das obras de caridade e outras obras. Tudo pode ser organizado, por exemplo, em cada continente ou cada totalidade cultural. Nos primeiros séculos a Igreja foi organizada em patriarcados, que eram unidades culturais. A existência dentro da ortodoxia católica de Igrejas de diversos ritos orientais mostra que isso pode funcionar muito bem. A centralização atual é o resultado de razões puramente históricas.

O sistema atual ainda é na Igreja a continuação do colonialismo. Chegando a Puebla, João Paulo II condenou as comunidades de base, condenou o movimento bíblico, condenou a teologia latino-americana. Conseqüência: em 30 anos, somente no Brasil, 30 milhões de católicos deixaram a Igreja católica para aderir a igrejas ou movimentos pentecostais ou neo pentecostais, conseqüência da pastoral imposta. O Papa escutou alguns conselheiros que tinham intenções políticas muito claras. Não procurou saber mais, recorrendo a instâncias mais representativas. Pensou que o problema era o comunismo - e não era o comunismo e ele tinha possibilidade de receber outras informações. Alguns podiam dar-lhe a informação de que América Latina não é Polônia e nem sequer é Europa. Nós estávamos aí sabendo o que ia acontecer, mas nada podíamos fazer. O cardeal dom Aloísio Lorscheider sentiu imediatamente tudo e procurou consertar, mas não tinha peso suficiente e não era da confiança do Papa.

3. Um sistema de governo em que uma pessoa sozinha decide tudo sem que haja debate público e instância deliberativa, chama-se ditadura. Um sistema em que as verdadeiras motivações das decisões do governo, são escondidas com certeza não responde as exigências do direito natural. Os cidadãos têm o direito de saber quais são os fundamentos das decisões tomadas. Por exemplo, quando Paulo VI condenou o uso de meios anticoncepcionais artificiais, não se soube que os cardeais consultados na sua maioria não concordavam, que as comissões nomeadas pelo Papa para estudar o assunto também não concordavam. Lembro-me muito bem de ter ouvido os comentários do cardeal Suenens, que era o meu bispo.

Muito bem. Uma geração depois, o Conselho da Família envia aos bispos um comunicado em que diz que já não se deve fazer perguntas às penitentes sobre a a sua prática de limitação de nascimento. Se não se pode fazer perguntas, é porque não se deve considerar como pecado. O próprio Alfonso López Trujillo teve que comunicar secretamente essa revogação implícita da encíclica Humanae Vitae. Mas porque não se disse publicamente? A maioria dos católicos ainda o ignora, embora não aceite a condenação. Os católicos não conhecem os métodos da Cúria romana; não sabem que nunca se publica a revogação de uma ordem dada anteriormente. Mas se diz que não se devem fazer perguntas aos penitentes. Até o papado de Bento XIV no século XVIII, nunca se havia revogado a condenação dos juros, o que proibia que católicos trabalhassem em bancos. Mas o Papa disse então aos confessores que já não se deviam fazer perguntas aos penitentes.

Porque não se disse que agora a autoridade tinha mudado? Por que as mulheres não podem saber que a Igreja já não condena os meios artificiais de limitação de nascimentos? Muitas ainda acreditam que a Igreja as segue condenando e tratando como pecadoras. Essas são práticas de ditaduras. Numa ditadura o governo nunca erra. Nunca reconhece que foi um erro. Na Igreja só se reconhece depois de quatro séculos. Se houvesse instancias de deliberação, poderiam ser evitados muitos erros que vêm da precipitação, criando depois a dificuldade de reconhecer o erro.

Se não se fazem essas reformas, nenhuma outra reforma pastoral será possível. Tudo depende do centro, tudo depende do papel do Papa. Paulo VI sabia-o e João Paulo II sabia-o também. Ainda não sabemos o que pensa o Papa atual. Mas acredito que não deve pensar diferente do seu antecessor.

Não é questão de santidade. O Papa Pio X foi um santo. Mas cometeu erros colossais em matéria bíblica que explicam uma boa parte dos problemas atuais da Igreja no meio do mundo! O problema é que o Papa é homem também e tem os mesmos limites da natureza humana. A sabedoria humana aprendeu a construir sistemas de governo adaptados à condição humana. Jesus não definiu nenhum sistema de governo. E não estamos mais nos tempos de Gregório VII. O problema é que tudo depende de uma pessoa só!

As reformas podem demorar séculos se não aparece um dia o Papa que toma a decisão de mudar o modo de exercício do ministério de Pedro. Em princípio, teria que ser um homem mais jovem. Precisa suprimir esse preconceito que é melhor um homem já de idade para que não permaneça na frente tanto tempo. Mas há outra maneira: o Papa pode aplicar-se a si mesmo a norma dada aos bispos. Antigamente os seres humanos viviam poucos anos, uma media de uns 30 anos. Hoje em dia a media já atinge 80 anos e vai subir mais. Não é normal que uma instituição tão complexa tenha que ser dirigida por um homem com mais de 80 anos de idade.

Tanta gente na Igreja pensa assim! Talvez sejam mais sábios do que eu pensando que de qualquer maneira nada vai mudar e é melhor conformar-se, do que gastar energia numa causa perdida de antemão. O que me consola, é que não estou sozinho. Já há muitas pessoas que estão escrevendo essas coisas.

- José Comblin

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