Foto: catklein
O encontro de Jesus com a samaritana é bastante conhecido (João 4, 1-30) e apresenta um paradoxo: Jesus, a água viva, pede de beber à samaritana. Esse não é o único paradoxo, nem a única “incoerência” desse texto que mistura fonte com poço, perguntas sem respostas e respostas a perguntas que ninguém fez. Ao beber na fonte cristalina do texto original, pode-se descobrir a riqueza de um itinerário iniciático apresentado pelo evangelista, oculto pela subjetividade de muitos tradutores.
Logo no início, ao anunciar a intenção de Jesus de ir da Judeia para a Galileia, as traduções dizem que para tanto “era-lhe necessário passar pela Samaria (4, 4)”, ou “era-lhe preciso” ou “tinha de passar”. Muitos vêem nisso uma obrigação geográfica: o caminho era por ali, não tinha jeito. Não é verdade. Na realidade, Jesus nem devia, nem precisava. Poderia tomar outro caminho, como a maioria dos judeus fazia: Por exemplo, seguir o vaie do Jordão — onde água e sombras eram abundantes — e evitar esses heréticos que eram, para os judeus, os samaritanos. Basta olhar um mapa da região e constatar. Jesus mesmo recomenda aos discípulos evitar a Samaria (Mt 10,5). Em Lucas (9, 51-56), os discípulos que atravessam a Samaria são mal recebidos.
Mas Jesus já os distinguia: o único dos dez leprosos curados, que volta reconhecido, era samaritano (Lc 17, 11-19) e na parábola do bom samaritano ele os opõe aos levitas do templo (Lc 10, 30-37). No texto grego original, Jesus devia, tinha de passar (êdei) no sentido de quem tem um objetivo. Jesus tinha um projeto de ir a Galiléia. A passagem da Judéia na Samaria lembra a profecia de Isaías, em que os reinos separados serão um dia reconciliados. Em Jesus acabará a separação, a divisão de Israel e Judá. O rei justo — sobre o qual repousará o Espírito de Deus — “ajuntará os banidos, ou desterrados de Israel, reunirá ou congregará os dispersos de
Judá” (Is 11, 12 cf. Os 2, 2; Jo 3, 18; 35, 50; Ex 37, 16-24). E nesse contexto que se deve entender porque Ele deve passar pela Samaria. Seu ensinamento era também para os excluídos, os impuros, os heréticos e os que tentam viver sua fé no meio de nações pagãs. Como nós, nos dias de hoje, cercados pelo neopaganismo e pelas heresias.
O episódio é polissêmico, rico em significados, já que, como nos neopagãos de hoje em dia, o ouvido dessa mulher não estava totalmente fechado. Ainda havia abertura, pois ela era habitada pelo desejo. E para ela serão revelados, progressivamente, os mistérios da oração “em espírito e verdade”. Existe um itinerário iniciático, muito bem construído por João, que leva das verdades
adquiridas e relativas, contidas em nós, para a Verdade infinitamente mais elevada e vasta que nos contém.
Como numa espécie de sétimo dia da criação, Jesus descansa. Cansado do caminho, ele Senta à beira do poço (4, 6). Santo Agostinho diz que é Deus quem se cansou, pois está nessa estrada há
séculos, milênios... em busca da humanidade. Deus está em busca do homem. Onde Ele poderia parar, pousar, repousar? No poço de nosso coração, na alma de cada um de nós. Talvez cada um já tenha vivido o essencial da experiência mística e espiritual: a descoberta de que não somos nós, mas é Deus quem nos busca. Era Deus quem nos buscava esse tempo todo. Mas como é difícil deixar-se achar, deixar-se amar “tal como somos”. A estrada é longa até esse ponto da aceitação total.
E aproximadamente à sexta hora, meio-dia, em que o sol abrupto não deixa sombras, nem lugar para elas; e nessa hora da sede e do desejo; e nesse momento de uma lucidez que deixa pouco lugar para as mentiras; e quando estamos na beira do poço, em nossa pior hora - é ali que Jesus nos espera. Na fonte (pegé) do nosso ser. Onde a vida surge, na saída, na sua gratuidade. O poço é o símbolo do coração humano. A vida nos leva a descer nas suas profundezas para descobrir a fonte. Estar no fundo do poço exige silêncio. Sentar na beira do poço é ficar na escuta, em estado de ressonância. E o que vamos escutar? O silêncio nos prepara para ouvir a voz que murmura no fundo das águas: dá-me de beber. O silêncio nos traz essa experiência.
Paradoxo: a água pede de beber. Jesus é a fonte que tem sede de ser bebida. Como entender esse chamado de Deus? A Fonte pede para ser reconhecida, pede tempo e atenção. Dá-me do teu silêncio, da tua solidão. Essa é nossa água, que podemos ofertar a Deus. Quem está disposto a dedicar para Deus uma parte do tempo de silêncio que entrega à televisão? Deus pede nosso silêncio, atenção e contemplação. É sempre uma surpresa ser chamado do fundo do Ser. Sentir-se esperado, desejado, por um Si que é mais que o nosso si-mesmo. Por um Todo Outro que si-mesmo. Pelo Desconhecido das profundezas. E desse primeiro despertar nasce o espanto: Por que eu? Por que “mim”? Isso é outra história, outro paradoxo, que a samaritana também vai descobrir. Mas hoje nos basta o convite a um pequeno voto de silêncio, como entrega gratuita a um Deus que, no fundo de nosso coração, pede de beber.
- Evaristo Eduardo de Miranda
In Corpo: Território do Sagrado, Ed. Loyola Tweet
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