Foto: A K Dolven
Alguma coisa está fora da ordem. A maioria de nós cresceu sob o signo de determinadas expectativas acerca dos papéis do homem e da mulher na sociedade, apesar da eclosão do feminismo e da luta pela igualdade de direitos das mulheres desde pelo menos o final do século XIX. A maioria de nós cresceu sob o signo da família nuclear composta por pai, mãe e filhos de um casamento monogâmico e vitalício, ainda que o divórcio tenha se disseminado a partir dos anos 60 e sejam cada vez mais raros os nascidos depois de 1980 que ainda tenham os pais vivendo o mesmo relacionamento estável e satisfatório após décadas de união. A maioria de nós anseia pelo encontro da sua cara metade, o/a parceiro/a ideal que nos completará e acompanhará pelo resto da vida - embora as estatísticas apontem para relacionamentos cada vez mais curtos e voláteis. Por que tamanho descompasso entre os fatos concretos e nossos conceitos sobre família, sexualidade e relacionamento amoroso, idealizações cada vez mais distantes da realidade?
A psicanalista Regina Navarro Lins, pesquisadora e autora de livros sobre sexualidade e relacionamento amoroso, vem procurando demonstrar que nossas ideias acerca de sexualidade, família, relações de casal, papéis sociais do homem e da mulher e dos próprios conceitos de masculino e feminino pertencem a um determinado contexto histórico, social e cultural; e, sendo conceitos histórica, social e culturalmente localizados, é natural que se transformem acompanhando a mudança permanente dessas três instâncias.
Natural, mas não fácil, e muito menos tranquilo. Todo sistema resiste à mudança. As crenças de que apenas o homem e a mulher exclusivamente heterossexuais obedecem à ordem ou Lei natural e de que qualquer outra variante do espectro da diversidade sexual é aberrante; de que as mudanças são decorrentes de um afrouxamento da moral ou uma crise dos bons costumes - talvez não passem de uma reação conservadora natural, e violenta, de uma sociedade sacudida pela transformação.
O medo e a raiva naturais diante da mudança exigem a identificação de um culpado e o sacrifício de um bode expiatório. E, nesse sentido, um dos alvos centrais têm sido os gays - os gays, que, por sua própria existência, crescente visibilidade e aceitação que se vai gradualmente disseminando nos diferentes extratos sociais, representam para muitos a grande ameaça aos ideais de casamento e família que parecem hoje ruir.
Em meio à convulsão da mudança e à brutalidade das oposições, exacerbações e radicalismos florescem de parte a parte. Porém, toda defesa extremada de qualquer posição é aprisionante. Converter conceitos próprios de um dado meio, lugar ou época em verdades universais e categorizá-los em certo ou errado, bom ou mau, dificilmente não vai implicar em restringir a liberdade fundamental do ser humano e aviltar sua dignidade. E isso vale para os dois lados de qualquer disputa.
Mudar não é fácil, porque crescer dói.
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Reproduzimos a seguir um interessante texto em que Regina Navarro Lins debate justamente os estereótipos de gênero e aponta para seu atual processo de transformação. Os grifos são nossos.
Masculino e feminino não existem
“A mulher pode ser feminina e ao mesmo tempo ser autônoma?” Fiz essa pergunta para mais de cem pessoas, homens e mulheres com idades variando de 20 a 55 anos. As respostas foram instantâneas e veementes: claro, lógico, óbvio. Em seguida coloquei a segunda questão: O que é uma mulher feminina? O comportamento de todos foi semelhante. Silêncio por algum tempo, como se tivessem sido pegos de surpresa. Hesitantes e confusas, as pessoas tentavam explicar.
Reunindo todas as respostas, surgiu o perfil da mulher feminina: delicada, frágil, sensível, cheirosa, dependente, pouco competitiva, se emociona à toa, chora com facilidade, indecisa, pouco ousada, recatada. Concluí, então, que a mulher considerada feminina é uma mulher estereotipada. Por isso, uma mulher não pode ser autônoma e feminina ao mesmo tempo. Autonomia implica ser você mesma, sem negar ou repudiar aspectos de sua personalidade para se submeter às exigências sociais.
É incrível, mas Vinicius de Moraes, considerado o poeta que amava as mulheres, em Samba da benção mostra a expectativa que se tem delas: “Uma mulher tem que ter qualquer coisa além de beleza, qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade; um molejo de amor machucado, uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher feita apenas para amar, para sofrer pelo seu amor e ser só perdão.”
Sem dúvida, na nossa cultura patriarcal, a mulher feminina renuncia a parte de si mesma, na tentativa de corresponder ao que dela se espera. O mesmo ocorre com o homem masculino. Suas características são, certamente, a força, o sucesso, a coragem, a ousadia, e tantas outras do gênero, sem esquecer, claro, aquela cobrança que atormenta todo menino: “Homem não chora.” São todas metas inatingíveis para a maioria e os homens estão esgotados.
Mas de onde surgiu essa diferença tão profunda entre os sexos? É uma antiga e longa história. Quando o sistema patriarcal se estabeleceu entre nós, há 5 mil anos, dividiu a humanidade em duas partes— homens e mulheres— e colocou uma contra a outra. Determinou com clareza o que era masculino e feminino, subordinando ambos os sexos a esses conceitos. E ao fazer isso, dividiu cada indivíduo contra si próprio, porque para corresponder ao ideal masculino ou feminino da nossa cultura, cada um tem que rejeitar uma parte de si, de alguma forma, se mutilando.
Tanto é assim, que a primeira coisa que se quer saber quando um casal vai ter um filho é o sexo da criança. Mesmo antes do nascimento o papel social que ela deverá desempenhar está claramente definido: masculino ou feminino. Os padrões de comportamento são distintos e determinados para cada um dos sexos. Os meninos são presenteados com carrinhos, revólveres e bolas, enquanto as meninas recebem bonecas, panelinhas e mamadeiras. E isso é só o início. A expectativa da sociedade é de que as pessoas cumpram seu papel sexual, que sofre variações de acordo com a época e o lugar. Até algumas décadas atrás, não se admitia que um homem usasse cabelo comprido e muito menos brinco. Eram coisas femininas. As mulheres, por sua vez, não sonhavam usar calças, nem dirigir automóveis. Era masculino.
Na realidade, a diferença entre os sexos é anatômica e fisiológica, o resto é produto de cada cultura ou grupo social. Tanto o homem como a mulher podem ser fortes e fracos, corajosos e medrosos, agressivos e dóceis, passivos e ativos, dependendo do momento e das características que predominam em cada um, independente do sexo. Insistir em manter os conceitos de feminino e masculino é prejudicial a ambos os sexos por limitar as pessoas, aprisionando-as a estereótipos.
E você, o que acha de tudo isso? Deixe suas opiniões nos comentários! :-)
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Reproduzido com autorização da autora. Publicado originalmente via twitter @reginanavarro Tweet
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