sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Sinais dos tempos


Alguns homens vêem as coisas como são, e dizem "Por quê?"
Eu sonho com as coisas que nunca foram e digo "Por que não?"
- G. B. Shaw

Quem tem acompanhado o noticiário com atenção talvez esteja pressentindo alguma mudança no ar. Um dos destaques da semana passada foi a nova resolução do Conselho Federal de Medicina concedendo a casais homossexuais e solteiros acesso a técnicas de reprodução assistida, até então prerrogativa de casais heterossexuais casados oficialmente. No último domingo, os leitores de O Globo, do Rio de Janeiro, foram surpreendidos pela matéria de capa da revista encartada semanalmente no jornal - uma reportagem sobre a saga de um casal de mulheres para ter um filho, que vinha sendo maturada desde julho de 2010 e foi oportunamente publicada agora. E, numa nota que talvez tenha passado desapercebida para a maior parte dos leitores, o G1 SP expôs o caso de outro casal de mulheres, que, junto com o filho, escapou de ser soterrado num deslizamento no ABC paulista.

Curiosamente, embora a resolução do CFM envolvesse um amplo conjunto de decisões relativas à aplicação de técnicas de reprodução assistida, afetando um público abrangente, a imprensa optou, em sua maior parte, por enfatizar a questão dos casais homossexuais. A TV Globo, por exemplo, aproveitou o mote para veicular, no Fantástico, uma matéria sobre direitos gays e homofobia, compilando tópicos diversos que têm estado em pauta no noticiário recente. Pode ter sido a escolha da polêmica fácil: uma rápida passada de olhos pelos comentários dos leitores nas matérias sobre o assunto nos veículos de comunicação on-line imediatamente revela o que parece ser um campo de batalha. De um lado, religiosos; de outro, gays. Nos dois casos, ânimos exaltados, agressões de parte a parte, e, salvo raríssimas exceções, nenhum diálogo.

Por trás desse lamentável festival de intolerâncias mútuas, porém, não é difícil constatar que tanto barulho tem uma causa: a resolução do CFM vem refletir uma transformação cultural que vem se consolidando nos últimos 20 anos. O mesmo pode ser dito da recente decisão da Receita Federal autorizando homossexuais a incluir o cônjuge como dependente na declaração de imposto de renda. Tudo indica que o antigo paradigma da família nuclear, restrito à imagem do casal heterossexual com filhos, está mudando. Cada vez mais se normaliza um conceito de família que abrange casais recasados, núcleos familiares com filhos de diversos casamentos, pais e mães solteiros - e casais gays.

Ainda assim, surpreendeu-nos (ou não deveria ser surpresa?) abrir o jornal de domingo e encontrar na capa da revista um casal de lésbicas com um bebê, acima do título "Álbum de família". Ou, dois dias depois, numa nota aparentemente trivial intitulada "Pratos quebram durante deslizamento e salvam mulheres no ABC", ver o jornalista referindo-se a uma das vítimas como "namorada" da outra e ao adolescente de 14 anos como "filho delas". Não seria de se esperar tamanha naturalidade da parte da imprensa?

Sobre o casal Cinthia e Carla e seu filho Illan, cuja história é contada na Revista de O Globo que ilustra este post, a jornalista Fátima Sá conta um episódio que demonstra essa crescente naturalização: logo após o parto, "Cinthia [a mãe biológica] descansava, e Carla admirava o bebê no berçário quando foi surpreendida por uma enfermeira:

- É seu filho, né? É a sua cara."

Sinais dos tempos. Entre os que acham que as mudanças se dão com excessiva lentidão e os que se sobressaltam diante de transformações assustadoramente evidentes, é inegável que passos vão sendo dados. Se pequenos ou grandes, devagar ou rápido demais, depende do ponto de vista ou do gosto do freguês.

Fato é que precisávamos - precisamos - começar por algum lugar. E, caso alguém não tenha ainda notado, sim: nossa jornada rumo a um mundo mais fraterno, onde haja mais diálogo e menos intransigência, mais flexibilidade e menos intolerância, mais amor e menos exclusão, já começou.

Estamos a caminho.

Cris Serra
Coordenadora-geral do Diversidade Católica

Um comentário:

Zuzu disse...

Filhos sacramentam no amor o casamento. Para casais gays, a conquista do direito de ter um bebê é também a conquista da graça de abrir seu casamento à vida, concretamente.
Que todos nós vejamos mudanças positivas na sociedade também; que a sociedade seja capaz de acompanhar a justiça.

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