domingo, 25 de março de 2012

Comunhão ou desunião?


Os sacramentos não "pertencem" ao clero – e ninguém está excluído deles.

A opinião é da teóloga feminista católica norte-americana Mary E. Hunt, cofundadora e codiretora da Women's Alliance for Theology, Ethics and Ritual (Water), em Silver Spring, Maryland, EUA. O artigo foi publicado no sítio Religion Dispatches, 05-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Mary E. Hunt também é autora do mais recente Cadernos Teologia Pública, nº. 66, intitulado Discurso feminista sobre o divino em um mundo pós-moderno. A versão online estará disponível a partir do dia 27 de março no sítio do IHU.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


A notável violação de decência que levou um pároco católico a negar a Comunhão a uma lésbica no funeral de sua mãe recebeu uma generalizada e bem merecida condenação (entenda o caso aqui). Até mesmo a arquidiocese de Washington admitiu que o padre havia violado as suas políticas. Em uma pequena nota, um vigário prometeu a Barbara Johnson e à sua família que ele iria celebrar uma missa em memória de sua mãe. Eles merecem simpatia pela sua perda, um completo pedido de desculpas da Igreja institucional e tempo para lidar com o seu luto em paz.

Ao invés disso, Johnson suportou corajosamente a atenção midiática para trazer à luz algumas rápidas mudanças no catolicismo. A mudança é uma alteração na autoridade. Ela é evidente na luta contra o projeto dos planos de saúde do presidente Obama, onde fica claro que a Conferência dos Bispos dos EUA não passa de uma das muitas vozes católicas na arena pública. Mais perto de casa (Roma), as pessoas já não consideram mais como competência do clero julgar quem faz parte da comunidade católica e, portanto, quem é digno para a Comunhão, e quem não é.

Envio as minhas condolências e agradecimentos à família Johnson. Ofereço algumas intuições sobre a questão para as muitas pessoas que ficaram pensando quem poderia ser tão cruel e insensível no funeral da mãe de alguém. Faço isso para apressar o dia em que tais ações indizíveis não aconteçam mais.

Trégua nas "guerras de hóstias"
Para os católicos, os sacramentos são algo poderoso, voltados a elevar à expressão pública alguns aspectos da vida cotidiana da comunidade. O sacramento não “torna” algo sagrado, mas o sacramento é celebrado “porque” algo é sagrado. Nesse caso, o que é sagrado é a vida de uma boa mulher pela qual a comunidade se reúne para dar graças e celebrar. Eu suspeito que o padre culpado não veria isso dessa forma, mas um número crescente de católicos sim.

O que alguns têm chamado de "guerras de hóstias" não são apenas diferenças na teologia, mas também diferenças na visão de mundo. Os dias de hocus pocus dominocus ficaram para trás, parte de uma perspectiva biologicamente construída que simplesmente não se sustenta em um universo guiado por símbolos. Com ecos de transubstanciação soando em nossos ouvidos, os católicos sabem agora que o que acontece na Eucaristia não é uma transformação mágica e inexplicável do pão e do vinho no corpo e no sangue literais de Jesus. A teologia sacramental foi além disso, até uma compreensão mais rica e mais simbólica.

Agora, nós ensinamos às crianças, e queremos que outros saibam, que nós entendemos a Eucaristia como a reunião de diversas comunidades de pessoas para dar graças e para lembrar a vida, a morte e a ressurreição de Jesus. Ao fazer isso, os participantes se unem à graça, à energia e à responsabilidade do movimento de Jesus então e agora. Ninguém é excluído da mesa. Nenhum padre está autorizado a cobrir o cibório quando certas classes de pessoas se aproximam do altar. Ao contrário, o coração da tradição, do sacramento e da solidariedade católicas é representado muitas e muitas vezes em um louvor perene com variações infinitas.

"Marge gostaria que você o fizesse"
O indecoroso incidente no recente funeral me fez pensar sobre o funeral de uma  popular e poderosa freira dominicana, a Ir. Marjorie Tuite, que ocorreu no dia 3 de julho de 1986, na Igreja de St. Vincent Ferrer, em Nova York. "Marge" Tuite era uma das organizadoras comunitárias formadas por Alinsky (ou foi ela que treinou Saul Alinsky?) antes que o termo fosse anexado a um certo presidente dos EUA. Ela, que trabalhava para o grupo ecumênico da Church Women United e oferecia muita solidariedade na Nicarágua, morreu de repente, depois de um episódio com o Vaticano acerca da assinatura de um anúncio no New York Times sobre o aborto. Alguns disseram que ela morreu de um ataque do coração pela forma como foi tratada por Roma.

O funeral de Marge atraiu familiares, amigos e ativistas pela justiça social de muitos tipos. As feministas católicas presidiram, na verdade, apesar de um padre amigo de Marge ter sido oficialmente citado como celebrante. Quando a missa começou, o pároco dominicano, trajando o hábito completo, incluindo o capuz, anunciou do púlpito que "apenas católicos", e de fato "apenas católicos que se prepararam", poderiam receber a Comunhão. Presumivelmente, ele queria dizer católicos que tinham se confessado recentemente e que jejuaram naquele dia. Ele imediatamente saiu da igreja, com o seu dever cumprido, e muitas pessoas insultadas.

No momento da Comunhão, diversas feministas católicas passaram pelo corredor central para garantir a todos que eles eram bem-vindos para receber a Comunhão: "Marge gostaria que você o fizesse" era a sua mensagem. Muitos o fizeram. William Sloan Coffin, um conhecido pastor protestante entrou na fila da Comunhão. O meu colega do clero presbiteriano à minha esquerda e o líder pro-choice [que defende a opção de abortar] católico à minha direita foram até o corredor central para a Comunhão. Nenhum sino soou, nenhuma luz piscou, ninguém foi derrubado do seu cavalo, e todos homenagearam Marge Tuite de uma forma que ela apreciaria. Foi uma Eucaristia católica com muita boa vontade por toda parte, como deveria ser especialmente em um funeral.

Percebo que alguns católicos olham de soslaio para tais práticas. Muitos não-católicos não têm certeza da etiqueta inter-religiosa nessa situação. Mas o que eu acho trágico é o testemunho de católicos como Phil Donahue. Em uma recente convenção do Dignity [movimento católico de defesa e apoio à comunidade LGBT], ele falou de maneira comovente sobre como é ser aquele parente no banco da igreja  por cima do qual os familiares passam para ir comungar. Ele aprendeu da Igreja institucional que o seu divórcio, o seu segundo casamento (de 30 anos) e a falta de uma anulação o tornavam indigno para receber a Comunhão. Quem disse?

A questão é: quem ensinaria as pessoas a se absterem da própria expressão de fé que as une ao resto da comunidade? Eu sei, aquelas mesmas pessoas que proibiriam a contracepção se tivessem meia chance. Mas, da forma como o catolicismo se desenvolve na pós-modernidade, tais ensinamentos vão na mesma linha de exigir que as mulheres cubram a cabeça na igreja. Esperemos que Phil Donahue entenda a mensagem.

A mudança é nos modelos de autoridade – do modelo de cima para baixo e centrado no clero para um modelo mais arredondado e comunitário. É algo novo sob o sol católico contemporâneo, mas é real.

O desrespeito com Johnson também me fez lembrar de um tempo em que eu dei uma palestra sobre imortalidade, sugerindo, assim como muitas teólogas feministas, que, quando morremos, talvez, nos tornamos parte do composto da nova vida. Meu comentarista era o altamente respeitado teólogo jesuíta John McNeill, expulso da Companhia de Jesus por ser abertamente gay. John, que não era um jovem na época, quase correu até o palco para explicar ao público qual ele considerava como sendo o meu principal erro. Ele via as coisas de forma bastante diferente no departamento da imortalidade. Assegurou aos presentes que espera ser acolhido nos braços de seu Deus Pai amoroso, que irá lhe chamar de "pequeno Jackie McNeill" por toda a eternidade. Que seja.

É assim que nós fazemos
Felizmente, nenhum dos dois já descobriu se algum de nós estava certo. Mas, logo depois das palestras, o meu amigo John e eu nos encontramos com um grupo para celebrar a Eucaristia. As nossas diferenças teológicas foram postas de lado para o que realmente era importante, ou seja, se aproximar à mesa para dar graças e receber o sustento espiritual juntos. É assim que os católicos fazem, apesar das diferenças teológicas.

Um relato da experiência de Johnson no funeral de sua mãe incluía um detalhe que eu não posso confirmar, mas posso muito bem imaginar. Um blogueiro que falou com ela escreveu que, depois de ter sido preterido pelo padre para a Comunhão, Barbara, na verdade, recebeu uma hóstia de um leigo que estava servindo como ministro da Eucaristia na missa. Ministros leigos distribuem a Comunhão em muitas, senão na maioria, das igrejas católicas nestes tempos de cada vez menos padres. Foi a pessoa não ordenada, e não o padre, que fez a coisa certa.

Esse gesto, baseado no senso comum pastoral, é o pior pesadelo dos clérigos católicos, que eu presumo que mantêm as autoridades romanas e diocesanas acordadas durante a noite. Os leigos estão assumindo uma crescente autoridade, não implorando a permissão nem o perdão de ninguém. O clero está começando a perceber que a Eucaristia não pertence a eles mais do que os edifícios, a teologia ou o ministério eclesiais. Eles não estão no comando de quem recebe a Comunhão, quer sejam políticos ou garçonetes, divorciados, recasados e/ou queers. Quer seja nas catedrais ou nas comunidades de base, as pessoas decidem por si mesmas sobre a Comunhão, assim como decidem sobre a contracepção, a sexualidade e o casamento. A comunidade católica está mudando de fato.

O vinho e o brinde do altar passam por um novo momento na história católica, como Barbara Johnson  recentemente pôde constatar.

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