Foto: Ben Herndon
“A fé não nos é confiada como uma barra de ouro que se trata de manter em um cofre, mas como um dom a ser valorizado e a fazer frutificar. A fé deve ser imaginativa e criativa. O oposto da preguiça e do conservadorismo.”
A reflexão é de Raymond Gravel, sacerdote do Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi - nosso último comentário desta semana sobre as ricas leituras do domingo, 33º Domingo do Tempo Comum (13 de novembro). A tradução é do Cepat, aqui reproduzida via IHU.
Eis o texto.
Referência bíblica: Mt 25, 14-30.
Estamos quase no fim do ano litúrgico de Mateus. O Evangelho do último domingo nos convida à espera: não uma espera passiva, mas uma espera ativa para a vinda do Senhor, ou melhor, para o nosso último encontro com ele no fim da nossa vida na terra. A parábola dos talentos do Evangelho de Mateus nos diz como deve ser a nossa espera: deve ser feita de risco, ousadia, coragem, desafio, criatividade e responsabilidade. A fé não nos é confiada como uma barra de ouro que se trata de manter em um cofre, mas como um dom a ser valorizado e a fazer frutificar. A fé deve ser imaginativa e criativa. O oposto da preguiça e do conservadorismo. Mas, como entender, interpretar e atualizar a parábola dos talentos do Evangelho de hoje?
1. Situação contextual. Cuidado para não confundir os talentos do evangelho com as qualidades ou talentos que possuímos. Estamos no final do Evangelho de Mateus, um pouco antes da parábola do Juízo Final, que teremos na próxima semana, na festa de Cristo Rei do Universo. O homem que faz uma viagem é o Cristo ressuscitado. Então ele confia aos seus servos, aos seus discípulos, todos os seus bens, seus talentos. Um talento equivale aproximadamente a 34 kg de ouro, ou seja, cerca de 15 a 20 anos de salário de um operário. É uma quantidade enorme que é confiada aos servos, de acordo com sua capacidade de fazê-los frutificar. Portanto, cada um recebe uma quantia diferente dos outros: "A um deu cinco talentos, a outro dois, e um ao terceiro" (Mt 25, 15a). No entanto, não há discriminação, como Mateus diz: "a cada qual de acordo com a própria capacidade" (Mt 25, 15b). Isto quer dizer a capacidade de fazê-los render, de investi-los, de multiplicá-los. Portanto, há um risco de perder o que é confiado aos servos. Mas qual é a relação entre o talento e a fé?
2. Talento = fé. No contexto da Igreja primitiva, o talento é a fé pascal confiada aos discípulos do Ressuscitado. Antes de sair, o patrão não pediu aos servos nada em troca dos talentos que lhes confiou. Então, por que, no seu retorno, ele elogiou os dois primeiros servos que fizeram frutificar os seus talentos? E por que ele culpa o terceiro por tê-lo enterrado? Especialmente porque, na lei rabínica da época, enterrar era considerado a proteção mais segura contra os ladrões; aquele que enterrava, ao recebê-lo, uma garantia, um depósito, estava dispensado de qualquer responsabilidade. Por isso, na parábola de Mateus, o talento não é mais o dinheiro, mas a fé dos servos, dos discípulos de Cristo.
O exegeta francês Jean Debruynne escreve: “Esses talentos são como a fé. A fé não desgasta quando é usada. A fé morre quando é enterrada, quando é escondida na terra, se a quisermos guardá-la para nós mesmos. Não se pode ter fé como se tem dinheiro. Pois a fé não é ‘ter’, é ‘ser’. A fé é viver. Esta não é uma segurança, é um ‘risco’ que Pascal chamava de ‘aposta’. A fé é um ‘investimento’ de alto risco...”.
3. A confiança e a generosidade do senhor. A soma confiada aos servos é inverossímil, de onde a confiança absoluta do senhor em seus servos. Cada talento vale entre 15 a 20 anos de salário. Imaginem cinco talentos, ou dois e até mesmo um só. Esta é uma confiança incondicional. Além disso, quando o senhor volta, muito tempo depois, e ele pede contas (Mt 25, 19), não é para retomar o que ele tinha confiado antes, pois deixa isso aos seus servos, não somente os juros, mas também o capital de bens confiados. Ele deixa isso com eles e lhes promete mais: “Muito bem, servo bom e fiel! Como foste fiel na administração de tão pouco, eu lhe confiarei muito mais. Venha participar da minha alegria” (Mt 25, 21.23). A mesma sentença é aplicada aos dois primeiros servos, mesmo que não tenham recebido a mesma quantidade de bens. Este não é, portanto, um empréstimo do senhor; é um dom, de onde a sua grande generosidade e sua liberdade.
Mas o que significa a dureza da sentença do terceiro servo? Basicamente, o senhor não é severo com o seu servo; simplesmente é impotente diante dele e não pode agir de outra forma. O senhor quis confiar-lhe um talento, e o outro o recusou, foi enterrá-lo por medo de perdê-lo: “Fiquei com medo, e escondi o teu talento no chão. Aqui tens o que te pertence” (Mt 25, 25). Para o servo, o talento pertence ao senhor; ele não o recebeu como um dom, como um bem a ser investido... e é por isso que este terceiro servo se condena a si mesmo; ele devolve o talento ao senhor, porque nunca o aceitou. Então, o senhor tira tudo dele, tudo o que o servo nunca teve, nunca recebeu e aceitou. E para mostrar que o terceiro servo se condena a si mesmo, Mateus o faz exclamar: "Senhor, eu sei que és um homem severo, pois colhes onde não plantaste, e recolhes onde não semeaste" (Mt 25, 24). É com base nas suas palavras que o senhor vai acolhê-lo... Tu sabias tudo isso e não investiste... "Tirem dele o talento e o deem ao que tem dez" (Mt 25, 28).
Novamente, vemos muito bem que o dinheiro do senhor também pertence aos servos que sabem fazê-lo frutificar. Em outras palavras, a fé que investimos se multiplica; ser crente é testemunhar, e pelo testemunho, dar um gostinho para os outros crerem. É assim que nós fazemos os bens do Reino frutificar. O teólogo francês Patrick Jacquemont escreveu: "Diga-me que rosto você dá a Deus e lhe digo o que você é capaz de receber dele. A crença generosa, confiando no homem e na mulher para cultivar a terra e fazê-la dar frutos? Aqui está uma grande soma, você saberá fazer crescer. Mas se Deus é para você um homem severo, ambicioso, que mete medo, então você não tomará nenhuma iniciativa, e o que lhe será dado permanecerá improdutivo e ainda lhe será tirado. Nesta parábola dos talentos não é o senhor que é cruel, mas essa é a imagem que dele faz quem receber apenas um talento. Isso se estabelece como uma reciprocidade. Quanto maior a minha fé em um Deus magnânimo, mais rica é a minha capacidade de criar e produzir. Se eu duvido do amor de Deus eu me torno incapaz de amar a mim mesmo. Deus dá muito a todos. Se não tivermos nada, será que não foi por que o presente retornou a Deus pelo fato não ter sido acolhido como um dom para fazer frutificar?"
4. Atualização. Caso eu atualize a parábola de hoje, devo necessariamente aplicá-la à Igreja que somos nós. Como discípulos de Cristo, somos responsáveis pela fé e pela esperança que nos são confiados. Isto significa que devemos investir para construir sobre a fé e a esperança... o que significa assumir riscos e enfrentar novos desafios. Se nós nos fecharmos em doutrinas, leis, regras, escritas em outra época e sobre as quais nos apoiamos sem querer alterá-las ou adaptá-las por medo de cometer um erro... é uma falta de confiança no Senhor e uma recusa em acolher os talentos que ele gentilmente nos quis confiar. Se a nossa reação é de medo e de negação de ousar novas aventuras, novos caminhos ainda inexplorados, podemos ser tratados como o terceiro servo da parábola: "Quanto a este servo inútil, joguem-no lá fora, na escuridão. Aí haverá choro e ranger de dentes" (Mt 25, 30).
Podemos pensar que o senhor é muito severo: por que não dar uma chance a esse terceiro servo? Por que tomar o seu talento e jogá-lo fora? Na verdade, o talento não é tomado, é o próprio servo que o devolve porque nunca o recebeu. Sobre a possibilidade de jogá-lo fora, talvez seja a única maneira de dar uma chance para o servo, a de mostrar, sem disfarce, as consequências da sua opção e de seu saber. Não se trata de sair da luz, uma vez que não nunca esteve na luz. A palavra do senhor revela apenas sua situação. Esta pode ser para ele uma oportunidade de sair do enclausuramento em que seu saber o acorrentou. Uma vez que formos ao limite do impasse, podemos descobrir que não há nenhuma saída e então podemos procurar um outro caminho.
O francês Éric Julien escreveu: "O senhor na parábola, Deus, não condena quem está errado... porque o seu Amor é mais forte que os nossos erros. No entanto, o seu Amor é impotente diante daqueles que têm medo, que fogem e que enterram seus talentos na terra. Ter medo de Deus é lhe fechar a porta e se desesperar. Ter medo de Deus é morrer aos poucos". Você não acha que isso se parece muito com a nossa Igreja hoje?
Para terminar, gostaria apenas de citar novamente Jean Debruynne, que disse: "O que Cristo nos quer fazer entender é que nós não devemos ter medo da nossa fé. A fé ousa o que nunca acreditamos ser possível... Acreditar é ousar". E André Rebré acrescenta: "O medo vem da ideia que temos de Deus... Se Deus é para nós um Senhor severo e implacável, um Juiz exigente, só podemos viver com medo. Mas se ele é o Deus de Jesus Cristo, o Pai amado, que provoca uma confiança ilimitada, ele não nos reprovará por ter perdido o nosso talento desde que nos tenhamos arriscado!" Tweet
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