sábado, 17 de setembro de 2011

Espiritualidade, diversidade religiosa e diálogo interreligioso


Entrevista com Faustino Teixeira, teólogo, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora - PPCIR-UFJF.

Quais são as principais questões que estão motivando o debate religioso na América Latina, hoje?

Creio que podemos indicar três questões importantes no cenário desse debate na América Latina, e em particular no Brasil. Situaria em primeiro lugar, a questão dos fundamentalismos religiosos. Trata-se de um tema que merece um cuidado particular nessas próximas décadas. Temos verificado aqui no Brasil o crescimento de afirmações religiosas identitárias que podem ser problemáticas, pois envolvem uma consciência de exclusividade salvífica que acaba excluindo o outro de uma saudável cidadania plural. Cresce de forma preocupante a intolerância religiosa por parte de certos núcleos neo-pentecostais, sobretudo com respeito às religiões afro-brasileiras. Essa temática foi abordada no livro organizado por Vagner Gonçalves: "Intolerância religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro." São Paulo: Edusp, 2007. É preocupante esse acirramento dos ataques de igrejas neopentecostais contra as religiões afro-brasileiras, e esse processo estende-se para outros países latino-americanos, como Argentina e Uruguai. Traços de intolerância verificam-se igualmente em segmentos do catolicismo romano no Brasil, como no caso de práticas da Comunidade Canção Nova, fundado pelo padre Jonas Abib. Tanto em programas de televisão como em publicações específicas verificam-se posturas beligerantes contra as outras tradições religiosas. Um exemplo vivo dessa postura encontramos no livro de Jonas Abib, "Sim, sim! Não, não!" (Editora Canção Nova). Em segundo lugar, situaria o desafio do pluralismo religioso. É como reação de insegurança a ele que se firmam perspectivas religiosas mais ensimesmadas e reativas. Ao convocar atitudes de abertura e dialogação, o pluralismo provoca temor, e com ele, atitudes de diabolização do outro ou de cruzada intolerante. Mas não há como driblar essa questão que tende a se firmar como dado incontornável nesse século XXI. Há que lidar com o pluralismo não como se fosse apenas uma questão de fato, a ser tolerada, mas entendê-lo como um pluralismo de princípio, expressão viva das riquezas da diversidade. Essa acolhida leva tempo, mas é imprescindível. Junto com o pluralismo religioso, em terceiro lugar, situa-se o desafio do do diálogo interreligioso. Se, de um lado, firmam-se experiências religiosas exclusivistas, de outro, irradia-se uma nova sensibilidade dialogal, que abre outras possibilidades de convivência harmoniosa entre as diversas tradições religiosas. Isso se percebe com alegria nos espaços de igrejas e universidades: uma sensibilidade nova em favor da plausibilidade de um pluralismo de princípio, pontuado pelo respeito da diversidade e o reconhecimento da dignidade do outro e do valor de sua convicção religiosa.

Quais os limites e possibilidades do diálogo inter-religioso hoje na América Latina?

O diálogo interreligioso emerge hoje como um dos mais fundamentais desafios para a América Latina e para a humanidade em geral. Já se tornou clássica a expressão cunhada por Hans Küng que sinaliza a impossibilidade de paz no mundo sem paz entre as religiões, bem como a impossibilidade de paz entre as religiões sem um diálogo entre as mesmas. As religiões têm um papel importante no tempo atual, não no sentido de serem as responsáveis pela resolução dos graves problemas que acometem o planeta, como a crise ecológica ou os demais problemas de ordem política, econômica e social. Mas elas podem exercer um papel importante no âmbito da renovação espiritual, no sentido de contribuir para a afirmação de um senso para a vida, conformando o universo motivacional. Podem ainda possibilitar a esperança num horizonte de fidelidade, fundamental para a manutenção do mundo sujetivo e comunitário. Isso se torna possível sobretudo quando elas atuam numa linha de comunhão, no respeito às diversidades específicas. As possibilidades para o diálogo estão dadas e são muitas, envolvendo os campos do diálogo da vida, das ações em comum, do diálogo doutrinal e o espiritual, que é o âmbito mais profundo de sua realização. Temos exemplos muito bonitos e significantes de práticas dialogais em nosso tempo, como no belo exemplo da comunidade dos monges de Tibhirine, na Argélia, tão bem ilustrada no premiado filme de Xavier Beauvois: Homens e Deuses. Há, porém, obstáculos que se interpõem ao exercício dialogal, como a auto-suficiência, a arrogância identitária, a incapacidade de abertura e a vontade de poder. Infelizmente são disposições muito presentes em nosso tempo, obstaculizando qualquer movimento de abertura ao plural.

Quais os principais desafios para as políticas de Estado no que tange à diversidade religiosa?

Creio que em primeiro lugar há que reafirmar com toda a energia possível o valor da diversidade e o respeito fundamental à legítima diversidade de caminhos religiosos e espirituais que traduzem a dinâmica vital em nosso tempo. Por isso, talvez melhor do que falar em diversidade religiosa, seria falar de diversidade de opções espirituais, que podem ser religiosas ou não. É uma importante pista lançada pelo teórico francês, Henri Pena-Ruiz, ainda pouco conhecido em nosso país. Ele trata com pertinência o tema da laicidade e de seus direitos na sociedade democrática. Em sua obra, "La laïcité" (1998), indica que a laicidade requer a exclusão “de toda discriminação na interpretação das doutrinas e crenças”. O aluno deve ter acesso às grandes referências espirituais da humanidade, sem necessariamente ser por elas condicionado. Pena-Ruiz alerta sobre o risco da confusão entre compreensão e adesão. É perfeitamente plausível o direito à compreensão, na escola pública, do sentido dos testemunhos espirituais que envolvem as diversas religiões, como seus ideias éticos, humanos e politicos, mas sem uma ênfase na adesão de crença. Não se pode igualmente privilegiar, no campo da atividade educacional, uma dada religião. Faz-se necessário um esforço coletivo para facultar o conhecimento respeitoso da diversidade religiosa, e de outras opções espirituais também substantivas para a afirmação do sentido.

E quais os principais desafios para a Educação Pública no que se refere à diversidade religiosa?

Não sou um especialista do tema, mas um leitor interessado. Enquanto defensor de um pluralismo de princípio, acredito que a Educação Pública tem um papel fundamental de resguardar os direitos da diversidade religiosa e espiritual. E também de defender permanentemente a liberdade de opções espirituais. Isso se reflete igualmente na complexa questão do “ensino religioso”. O tratamento dessa questão não pode manter-se inalterado, sobretudo depois das mudanças vislumbradas no campo religioso brasileiro, com a crescente diversidade religiosa. Vejo com dificuldade as formas vigentes de ensino religioso confessional em nosso país. Há que ampliar a discussão e percorrer novos caminhos, em sintonia mais fina com os desdobramentos teóricos em curso sobre a pluralidade religiosa. Identifico-me, em parte, com a perspectiva defendida na França por Regis Debray, de defesa do ensino do “fato” religioso na escola laica (L´enseignement du fait religieux dans l´école laïque, 2002). É necessário criar condições de aperfeiçoamento docente para a apresentação séria e fundamentada do “estudo do religioso” na escola pública, facultando uma abordagem honesta e digna sobre esse fenômeno. Isso pressupõe a formação de um quadro docente especializado, numa linha multifacetada, e com “ouvido musical para a religião”. Há que possibilitar uma maior aproximação “descritiva, factual e nocional” das religiões em sua pluralidade, sem privilégios e exclusividades. E isso deve ser realizado de forma sensível e delicada, com o devido respeito que o fenômeno religioso merece, com a atenção sempre acesa para a perspectiva interdisciplinar. É o caminho de acesso para superar uma “laicidade de incompetência” (o religioso, por construção, não nos interessa), em favor de uma “laicidade de inteligência” (é nosso dever compreendê-lo).

O que o senhor pensa sobre o papel do professor de ensino religioso na escola pública?

Num breve artigo que escrevi para um livro em torno do tema do Ensino religioso e formação docente (Paulinas, 2006 ), levantei algumas pistas sugestivas para esse papel do professor de “ensino do religioso”. Sugeri que o docente dessa área deve ter uma sensibilidade particular, pois trata de um tema delicado e complexo, que merece atenção, cuidado e respeito. Temos que nos dar conta que nesse campo das religiões estamos sempre caminhando “sobre um solo sagrado”, para utilizar uma expressão cara a Raimon Panikkar. O docente deve ser alguém que busca permanentemente aperfeiçoar o seu olhar e sua escuta para poder captar e transmitir com honestidade e fineza o mundo da alteridade. Há que reconhecer que o outro é sempre um enigma extremamente complexo, que resiste a qualquer apreensão simplificadora. O docente dessa área deve evitar, por princípio, atitudes e reflexões preconceituosas, apriorísticas e simplificadas. Daí a importância de seu constante aperfeiçoamento. Ele deve não só aprimorar seus conhecimentos teóricos sobre as religiões, mas também ampliar sua sensibilidade face ao enigma das religiões. O trabalho do docente deve ainda facultar o reconhecimento da alteridade e o respeito à sua dignidade. O estudo do fenômeno religioso deve possibilitar o exercício de uma dinâmica que seja marcada por um profundo respeito às diversas convicções religiosas. E, finalmente, favorecer a percepção da riqueza e do valor de um mundo plural e diversificado. As religiões não são apenas genuinamente diferentes, mas também autenticamente preciosas. Há que honrar essa alteridade, em sua especificidade peculiar, reconhecendo o valor e a plausibilidade de um pluralismo religioso de direito ou de princípio.

Gostaríamos que o senhor fizesse comentários sobre a transcendência como uma dimensão humana e as suas distintas manifestações culturais.

O meu grande mestre nessa reflexão foi sempre Karl Rahner, que trata com argúcia essa questão da experiência transcendental do humano. Trata-se, para ele, de uma experiência que “faz parte das estruturas necessárias e insuprimíveis do próprio sujeito que conhece”. Todo ser humano, enquanto ser de transcendência, está orientado a um mistério sempre maior, que pode ser por ele nomeado como Deus, como Todo, como Vazio ou como Real. Esse Mistério está íntimamente relacionado com o humano, embora sempre escape de sua compreensão. Há sempre uma “reserva escatológica” que preserva a qualidade de supresa e dom desse Mistério. Como assinala Rahner, “o mistério com sua incompreensibilidade é o que existe de mais evidente”. Esse mistério está no tempo, na vida cotidiana, em todo lugar. Não há como furtar-se de sua Presença envolvente. Ele pode ser captado de forma a-temática ou mesmo irreligiosa. Pode-se experimentar sua acolhida mesmo fora das religiões, em opções espirituais marcadas pela profundidade: temos, por exemplo, a experiência da “imanensidade”, com sublinha Comte-Sponville. O importante é sempre estarmos atentos à nossa dimensão de profundidade e voltados com particular sensibilidade ao “canto das coisas”. Na bela visão de Raimon Panikkar, a mística é sobretudo a experiência do Real, vivido em profundidade, e a espiritualidade o caminho para atingir essa meta. A mística verdadeira nos leva ao coração do Real, ou seja, ao “sentimento do Universo”.

Qual a é a relação entre espiritualidade e transcendência? Se relacionam sim ou não?

Como assinalava antes, a mística é a “experiência suprema da realidade” e a espiritualidade o caminho para alcançar tal experiência. Não há dúvida que a espiritualidade relaciona-se com a transcendência, mas diria que ela relaciona-se igualmente com a imanência. Aliás, o Mistério mais profundo é sempre transcendente/imanente. A espiritualidade não pode ser reduzida ao fenômeno da religiosidade, a não ser que a nossa compreensão de religiosidade seja bem ampla. Assim a definiu, por exemplo, Paul Tillich, distinguindo-a de seu conceito estrito. Num sentido lato, seguindo a pista aberta por Tillich, a religiosidade toca o âmbito do profundo e se traduz como “a dimensão da realidade suprema nos diferentes campos do encontro do ser humano com a realidade” (P.Tillich, "My Search for Absolutes"). Gosto da definição de espiritualidade apresentada por Dalai Lama. Ele a distingue da religião. Para Dalai Lama, a espiritualidade está relacionada com “qualidades do espírito humano”, como o amor, a compaixão, o respeito ao outro, a cortesia e a hospitalidade. E tais qualidades podem ser desenvolvidas mesmo em alto grau entre aqueles que não partilham um determinado sistema religioso. Por isso minha simpatia pela idéia de “opção espiritual”. Como indica Dalai Lama, as pessoas podem até dispensar a religião como projeto de vida, mas jamais essas qualidades espirituais essenciais para a afirmação do humano.

O que mais o senhor gostaria de acrescentar?

Gostaria ao fim dessa entrevista indicar uma pista lançada por um importante filósofo da Escola de Kyoto, Keiji Nishitani (1900-1990). É um autor ainda pouco conhecido entre nós, mas sugere reflexões muito preciosas sobre a espiritualidade do cotidiano. Numa de suas obras mais ricas, "A religião e o nada" (Religion and Nohingness, 1982), ele nos sinaliza que as coisas mais simples podem tornar-se um essencial ponto de concentração, a ponto de facultar o sentimento profundo do real e despertar uma sensibilidade nova. São experiências que nos fazem perceber a delicada presença do Mistério em tudo, nos detalhes mais simples da vida cotidiana. Mas há que saber maravilhar-se para poder perceber isso. Nishitani, com sua sensibilidade zen, indica-nos a presença de uma ordem mística que envolve todas as coisas. Somos assim convidados a captar esse “profundo sentimento da realidade das coisas cotidianas”. Não sem razão, o grande trapista Thomas Merton, ensinava aos seus noviços em Gethsêmani que a experiência contemplativa nada mais era do que viver a vida, como o peixe na água. E viver em profundidade. Nada mais falso do que isolar a vida espiritual dos mais profundos interesses humanos.

Fonte: Amai-vos, com grifos nossos

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