sábado, 23 de julho de 2011

Sobre a ordenação de mulheres


Nas últimas duas semanas, a ordenação de mulheres alcançou grande relevo nos meios de comunicação, por causa de declarações inesperadas do cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo. Numa entrevista publicada no Boletim da Ordem dos Advogados, declarara que "teologicamente não há nenhum obstáculo fundamental" à ordenação de mulheres (aqui). A recusa está baseada apenas na tradição.

A declaração teve eco em importantes órgãos de informação estrangeiros. Tanto mais quanto aparecia pouco tempo depois de um bispo australiano ter sido demitido devido à mesma abordagem do tema, e o vaticanista Andrea Tornelli fez notar que a declaração ia contra a doutrina afirmada por João Paulo II e Bento XVI.

Como seria de prever, choveram os protestos, provindos, segundo se diz, sobretudo do Opus Dei e do próprio Vaticano. As reacções, algumas de "indignação", obrigaram o patriarca a um esclarecimento, recuando. Nele, confessa a necessidade de "olhar para o tema com mais cuidado", acrescentando: "Verifiquei que, sobretudo por não ter tido na devida conta as últimas declarações do Magistério sobre o tema, dei azo a essas reacções." E reproduz a carta Ordinatio Sacerdotalis, de João Paulo II: "Declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja."

Quando se pensa, vê-se aqui a tipificação do que é na Igreja o respeito pelo direito de opinião e expressão. Depois, não se atende à vontade de tantos bispos a quem não só não repugnaria como até gostariam de ordenar mulheres. Ficou famosa a afirmação de D. Eurico Nogueira, então arcebispo de Braga: "Gostava de ver uma mulher no meu lugar".

As mulheres têm motivos para estar zangadas com a Igreja, que as discrimina. Jesus, porém, não só não as discriminou como foi um autêntico revolucionário na sua dignificação, até ao escândalo: veja-se a estranheza dos discípulos ao encontrar Jesus com a samaritana, que tudo tinha contra si: mulher, estrangeira, herética, com o sexto marido. Condenou a desigualdade de tratamento de homens e mulheres quanto ao divórcio. Fez-se acompanhar - coisa inédita na época - por discípulos e discípulas. Acabou com o tabu da impureza ritual. Estabeleceu relações de verdadeira amizade com algumas. Maria Madalena constitui um caso especial nesta amizade: ela acompanhou-o desde o início até à morte e foi ela que primeiro teve a intuição e convicção de fé de que Jesus crucificado não fora entregue à morte, pois é o Vivente em Deus.

Santo Agostinho, apesar da sua misogenia, declarou-a apóstola dos apóstolos, devido ao seu papel fundamental na convocação dos outros discípulos para a fé na Ressurreição. Aliás, já São Paulo na Carta ao Romanos pede que saúdem Júnia, "apóstola exímia".

Evidentemente, os opositores vêm sempre com aquela dos Doze Apóstolos, entre os quais não consta nenhuma mulher. Esquecem que na instituição dos Doze se trata de uma acção simbólica, para indicar que começava o novo povo de Deus. Como as mulheres e as crianças na altura não contavam, o símbolo perderia a sua eficácia, se se falasse também de mulheres entre os Doze.

E também se diz que na Última Ceia não houve mulheres. Ora, esta afirmação é contestada por grandes exegetas. Depois, o famoso biblista Herbert Haag, da Universidade de Tübingen, com quem tive o privilégio de privar, ironizou: como eram só judeus os presentes, então a Igreja só devia ordenar homens judeus.

Sobretudo: é sabido que as primeiras comunidades cristãs se reuniam na casa de cristãos mais abastados, e quem presidia era o dono ou a dona da casa. Então, se já foi possível mulheres presidirem à Eucaristia...

A questão tem, pois, de ser revista. Para não ferir este princípio fundamental do Concílio Vaticano II: "Toda a forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa por razão de sexo deve ser vencida e eliminada, por ser contrária ao plano divino."

- Anselmo Borges, teólogo e fílósofo, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Artigo publicado no jornal Diário de Notícias, 16-07-2011, e aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.

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