segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Caritas In Veritate In Re Sociali


Reproduzimos abaixo um artigo* de Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, a respeito da primeira encíclica social de Bento XVI, Caritas in veritate. Publicado em 29 de junho de 2009, o documento surpreendeu ao fazer não uma análise da realidade social, explica a autora, mas sim elucidar o conceito de caridade.

Embora não seja atual, julgamos oportuno publicar aqui esta breve análise a fim de contribuir para o debate acerca da questão do amor na doutrina católica corrente e sua aplicação tanto à realidade social quanto ao compromisso social da Igreja. Os grifos são nossos.

Muito esperada era a primeira encíclica social de Bento XVI, onde o Papa exporia seu olhar sobre a realidade, a coisa social (re sociali). Encerrando o Ano Paulino e citando a carta do apóstolo aos Romanos, quando exorta a comunidade de Roma a uma caridade verdadeira, que não seja uma farsa (Rom 12, 9-10), Bento XVI enfim entrega sua encíclica, na festa de São Pedro e São Paulo, a 29 de junho.

Os que esperavam um documento com agudas análises sociológicas seguramente estão defraudados. A preocupação do Papa teólogo é clarificar, dentro do conjunto da revelação cristã, o conceito de caridade. E o faz desde o início da encíclica, quando sublinha a origem divina e gratuita da caridade, amor que é - antes que ação transformadora e compromisso social - graça. Graça cuja origem é o amor trinitário, que o Pai revela pelo Filho, Verbo Encarnado, e experimentamos como Espírito derramado em nossos corações (nº 5).

Este e não outro, frisa a encíclica, é o amor que se encontra no centro da Doutrina Social da Igreja (DSI), e que só tem compromisso com a Verdade. E se a fé cristã professa e proclama que a Verdade se encontra em Jesus Cristo, há que assumir nos dois elementos fundamentais dessa doutrina – a justiça e o bem comum – a concepção que preside o Evangelho do mesmo Jesus: caridade que supõe e inclui a justiça, mas a supera na lógica da entrega e do perdão (nº 6); caridade que atua em favor do bem comum em qualitativa diferença ao bem meramente secular e político, preparando a felicidade definitiva pela qual o ser humano anseia (nº7).

A preocupação do Papa se explicita mais claramente nos nº 9 e 10, quando procura diferenciar o serviço de caridade que a Igreja pode e deve oferecer ao mundo globalizado de outras instituições. “O risco de nosso tempo é que a interdependência de fato entre os homens e os povos não encontre correspondência com a interação ética da consciência e o intelecto, da qual possa resultar um desenvolvimento realmente humano” (nº 9). A missão da Igreja na sociedade, segundo o Papa, não é oferecer soluções técnicas e políticas “strictu sensu”. Mas sim apresentar a verdade única a poder construir uma sociedade na medida da vocação e da dignidade do ser humano tal como o cristianismo a entende. (nº 10)

Em seguida, ao longo de todo o Cap. I, o texto comenta a encíclica
Populorum Progressio, do Papa Paulo VI, a quem chama de “venerado predecessor” (nº 8) para, no capítulo II, descrever como entende o desenvolvimento humano em nosso tempo, quarenta anos depois. Permanece válida a proposta de Paulo VI, com os acréscimos que respondem às novas exigências que os novos tempos trazem. Tudo isso prepara aquilo que no Cap. III o pontífice dirá sobre a antropologia fundada sobre o dom e não sobre o mérito (nº 34).

A verdade e a caridade são dadas por Deus ao ser humano e precedem qualquer ato ou iniciativa sua. E é esse fundamento que permitirá orientar a globalização da humanidade em termos de relacionalidade, comunhão e participação gratuitas (nº 43), único antídoto contra a solidão, pobreza maior de todos os tempos (nº 53). O desenvolvimento verdadeiro, portanto, segundo a encíclica, consistirá na “inclusão relacional de todas as pessoas e todos os povos na única comunidade da família humana...em solidariedade sobre a base dos valores fundamentais da justiça e da paz.“ (nº 53).

Sob esta luz é que o Papa comenta, então, os grandes temas sociais de hoje, tais como migrações, meio ambiente, bioética, técnica, situando-os sob a definição de temas antropológicos (nº 75). A problemática social é, na verdade, antropológica, dirá a encíclica quando caminha para sua conclusão. E deve, portanto, não conceber o desenvolvimento apenas como problema material, mas também espiritual e moral (nº 77). O cristão é chamado a comprometer-se na transformação social sem deixar de lado a oração e a primazia de Deus sobre todas as coisas.

Parece ser intenção da nova encíclica reafirmar que a caridade iluminada pela verdade deve incluir necessariamente a dimensão transcendente e espiritual, para não se transformar em mais uma ideologia. E para isso parte do princípio de que a tarefa da transformação social antes de tudo é dom de Deus e não mero esforço humano. (nº 79)

Além de admitir que se trata de afirmação da maior importância, é de se desejar ardentemente que a nova encíclica de Bento XVI não sirva de pretexto para cair em uma visão alienada e espiritualista dos problemas sociais. Isto, a nosso ver, seria tão daninho à verdade como os perigos reais e sérios que o Papa aponta em seu belo e profundo texto.

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*Publicado originalmente no site do Amai-vos.

2 comentários:

MARCELO MORAES CAETANO disse...

A natureza inspirada da encíclica, a meu ver, se revela quando o amado Papa nos educa no sentido de que as bases dos problemas "sociais" são, na verdade, antropológicas. Com essa acuidade reveladora, o Supremo Pontífice exorta à responsabilidade individual, à reflexão e ao exame de consciência, retirando da sociedade a suposta culpa por males advindos da intolerância e da intransigência, como, sobretudo, a falta do exercício do dom da caridade.
Bento XVI, com sua profunda Teologia, como um verdadeiro Professor que é, faz de cada um de nós um instrumento insubstituível da melhora em âmbito social. Em vez de frisar a influência da coletividade sobre o indivíduo, o Santo Padre focaliza exatamente o contrário: a influência do indivíduo sobre a coletividade. Com isso, deixa claro que "a caridade não deve esperar pelo próximo, mas deve ir ao próximo", como ensina Santa Teresinha do Menino Jesus.

Equipe Diversidade Católica disse...

Sim, Marcelo... essa chamada à responsabilidade pessoal pela construção do Reino, tendo como parâmetro central a própria consciência, remetendo à realização humana em seu sentido mais profundo, é, para nós, uma das mais preciosas contribuições do cristianismo ao mundo de hoje, e talvez sua mensagem mais atual... :-) Um abraço!

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