quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Quando o papa voltou a ser ''só'' um homem



Há um ano, "um raio em céu sereno", como disse o cardeal Sodano, atingiu a Igreja Católica, despreparada para viver uma situação inédita há muitos séculos: um bispo emérito de Roma vivendo sob um novo pontificado. O que levara Bento XVI a fazer o gesto da renúncia? A situação de conflitualidade, de escândalos na Cúria Romana estimulava ainda mais as perguntas, que também assumiam contornos inquietos. (...)

Mas também havia nele outra razão que o levou à renúncia: a sua convicção teológica – bastante rara para um pontífice – de que, embora tendo se tornado papa, permanecia uma distinção profunda entre o seu ministério e a sua dimensão de simples homem e cristão. Não por acaso, quando publicou a sua trilogia sobre Jesus de Nazaré, ele quis assinar os livros como simples autor e teólogo, sem muni-los com o magistério papal.

Podemos dizer que Bento XVI nunca esqueceu o que Bernardo de Claraval escreveu ao Papa Eugênio III: "Lembra-te de que és um homem, nascido de uma mulher...". Assim também, na renúncia, Ratzinger soube mostrar a sua humildade, o fato de querer acima de tudo o bem da Igreja, de confessar a sua própria fraqueza e fragilidade, de aceitar ver reduzidas todas as competência a um só mandato: a intercessão.

- Enzo Bianchi, aqui

* * *

Um ano depois daquele 11 de fevereiro que mudou a história do papado e revolucionou a Igreja Católica, há uma única palavra que pode ser dirigida a Bento XVI: "Obrigado!". Obrigado por ter permitido, com o seu gesto humilde, nobre, lúcido e corajoso, a reviravolta que levou à eleição do Papa Francisco.

A reportagem é de Marco Politi, publicada no jornal Il Fatto Quotidiano, 11-02-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Há uma expressão alemã, "Selbstlos", que significa "privar-se de si". É mais forte do que "desinteressado", porque implica a força de saber se despojar do apego que cada um sente por si mesmo.

Bento XVI, na manhã de 11 de fevereiro, despojando-se do manto papal na frente dos cardeais, deu prova dessa força. O destino de Ratzinger sempre foi o de ser classificado em caixas estereotipadas. Ele teve admiradores cegos que, por oportunismo, se calaram quando as coisas não iam bem e que hoje, com desenvoltura, passam dos conteúdos da era ratzingeriana aos conceitos de Bergoglio como se se tratasse de uma mudança de menu sazonal. E adversários por princípio, prisioneiros da imagem de Panzekardinal a ele ligada.

Joseph Ratzinger teve uma riqueza de pensamento que será lembrada pelo seu esforço de conjugar fé e racionalidade, fugindo de toda patologia integralista, e de refletir sobre o papel do cristianismo como força de minoria ativa em uma sociedade secularizada na urgência de transmitir ao mundo contemporâneo uma mensagem principal: "Deus é amor, e Jesus é o seu rosto".

Outros aspectos da sua doutrina – começando pelos chamados princípios inegociáveis – foram amplamente criticados. Mas o que importa no aniversário da sua renúncia é o percurso do personagem histórico. Bento XVI tinha e tem muitos dotes: de teólogo, de pregador e de pensador. Não tinha o carisma do governante. A política é uma arte como saber tocar piano. Ratzinger não a possuía como Pio XII, ou Paulo VI, ou João Paulo II (cada um com seu viés particular).

Menos ainda ele possuía a arte de dominar as crises. E, no entanto, no momento em que se deu conta de que o governo central da Igreja Católica estava entrando em uma paralisia destrutiva, Bento XVI não se agarrou ao cargo confiando na tradição quer o quer eterno (até que a morte intervenha). Ele não se fechou em uma atitude rancorosa, culpando os outros e autoabsolvendo a si mesmo. Ele tirou as conseqüências, com sentido de dever alemão, assim como por sentido de dever – e não por ambição – tinha aceitado a eleição papal por ele não buscada, mas sim sofrida. A lucidez do seu gesto consiste em ter demitologizado o cargo papal e em ter dado novamente a palavra ao único corpo eleitoral que existe na Igreja Católica: o colégio cardinalício.

Sem a sua abdicação, os cardeais – a maioria dos quais são bispos residenciais nas mais variadas nações diferentes – não teriam tido a liberdade de fazer um exame crítico imparcial do estado da Igreja e da Cúria, e não
teriam tido o impulso de buscar um pontífice saindo das fronteiras já estreitas da Europa.


O conclave de 2013 mundializou a Igreja, e o fato de ter permitido a virada epocal, sacrificando a si mesmo, é merito de Ratzinger.

Caiu um raio na noite de 11 de fevereiro justamente sobre a cúpula de São Pedro. A foto pareceu testemunhar o evento inédito, porque, desde a Idade Média, não se tinha assistido mais a uma renúncia de um pontífice, e uma comissão secreta, instituída por João Paulo II, tinha desaconselhado decididamente essa hipótese.

Devia ser um dia de rotina, com um discurso normalíssimo de Bento XVI no consistório dos cardeais em vista da canonização dos mártires de Otranto, mortos pelos turcos mais de meio milênio antes. Discurso de rotina que a vaticanista da Ansa, Giovanna Chirri, acompanhou do seu cubículo na Sala de Imprensa vaticana – com os olhos fixos em uma pequena tela de televisão – sem ceder ao tédio.

E foi o seu dia de glória, porque, depois do discurso oficial, Bento XVI tomou um pedaço de papel e começou a ler em latim o ato de renúncia, e Chirri não deixou escapar a palavra "ingravescente aetate... idade avançada" e entendeu que o impensável estava acontecendo.

Captar de relance a notícia histórica, avaliá-la, obter a confirmação e transmiti-la por primeiro é o máximo que um jornalista pode fazer. Giovanna Chirri, às 11h46min, anunciou ao mundo o fim do pontificado ratzingeriano. Primeira em absoluto em comparação com todos os meios de comunicação. Menos preparados do que Chirri, naquele momento muitos cardeais na sala do consistório não entenderam bem do que se tratava. Bento XVI falava em voz baixa, com pressa, com frases cortadas, e o latim, para muitos, era uma recordação de outros tempos. Compreenderam apenas quando o cardeal Sodano, decano do colégio cardinalício, fez um breve discurso de resposta consternado.

Um mês depois, cinco votações no conclave apagaram qualquer hipótese de um papa italiano ou europeu. Escolheu-se o arcebispo de Buenos Aires, que durante semanas no pré-conclave não havia sido cotado como papável.

O eleito foi além das previsões dos seus eleitores. Não se limitou a um programa de racionalização da Cúria e de reorganização do banco vaticano. Francisco mudou a abordagem da Igreja diante da sociedade contemporânea e dos problemas dos fiéis, especialmente noo campo sexual; está criando um papado em que os episcopados do planeta inteiro participam das escolhas estratégicas da Igreja; levantou a questão da mulher nos centros de decisão eclesiais. E não acaba por aí.

Fonte

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