segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A Igreja e a descriminalização da homossexualidade



A Igreja e a descriminalização da homossexualidade (1)


No final de 2008, uma proposta encabeçada pela França nas Nações Unidas gerou um debate acalorado: a descriminalização da homossexualidade em todo o mundo. Segundo grupos de direitos humanos, o homoerotismo ainda é punível em mais de 85 países e pode levar à pena de morte em outros, como o Afeganistão, o Irã, a Arábia Saudita, o Sudão e o Iêmen. A proposta francesa teve a adesão de 66 países e a rejeição de 62 países. Estes, liderados pelo Egito, apresentaram uma declaração de oposição.
O Vaticano se posicionou oficialmente. O seu porta-voz, o padre Frederico Lombardi, emitiu um comunicado em que afirma: “Os conhecidos princípios do respeito dos direitos fundamentais da pessoa e da rejeição de toda injusta discriminação – reconhecidos claramente pelo próprio Catecismo da Igreja Católica – excluem evidentemente não só a pena de morte, mas todas as legislações penais violentas ou discriminatórias em relação aos homossexuais”(2). Nas Nações Unidas, a delegação da Santa Sé manifestou apreço pela proposta francesa de condenar todas as formas de violência contra pessoas homossexuais, e exortou os Estados a tomarem as medidas necessárias para pôr fim a todas as penas criminais contra elas (3). Para a Igreja, os atos sexuais livres entre pessoas adultas não devem ser considerados um delito pela autoridade civil (4).
Há também divergências. O Vaticano faz ressalvas à proposta francesa por considerar que há risco para quem não colocar exatamente no mesmo nível toda orientação sexual. Haveria um instrumento de pressão, por exemplo, contra legislações que privilegiam o matrimônio entre um homem e uma mulher (5).
Esta posição da cúpula da hierarquia católica não teve muita repercussão na mídia. Segmentos da imprensa ligados ao mundo gay fizeram o seguinte comentário sobre a Igreja: ‘amiga, pero no mucha’. No entanto, considerando o horizonte da história, trata-se de um fato absolutamente novo que convém analisar.
No Ocidente, o homoerotismo era relativamente tolerado na civilização greco-romana. Mas na tradição judaico-cristã esta prática é identificada com o pecado de Sodoma, isto é, a tentativa de estupro feita aos hóspedes do patriarca Ló, que resultou no castigo divino destruidor (Gênesis, cap. 19). Sodoma se torna o ápice do castigo de Deus para os ‘crimes da carne'. Com a ascensão do cristianismo e a união entre Igreja e Estado na cristandade, o homoerotismo é intitulado ‘sodomia’ e criminalizado. O seu agente é o ‘sodomita’, um indivíduo de alta periculosidade que atrai desgraças e infortúnios para a coletividade. Julgar e executar sodomitas tornou-se moral e legal.
Na Brasil do século 18, por exemplo, que então era colônia de Portugal, as Constituições do Arcebispado da Bahia consideravam a sodomia ‘tão péssimo e horrendo crime’ que “provoca tanto a ira de Deus, que por ele vêm tempestades, terremotos, pestes e fomes, e se abrasaram e subverteram cinco cidades, duas delas somente por serem vizinhas de outras onde ele se cometia” (6). Era um pecado indigno de ser nomeado, por isso chamava-se ‘pecado nefando’, do qual não se pode falar, muito menos se cometer. Tribunais eclesiásticos, como a Inquisição, julgavam os acusados de sodomia e entregavam os culpados ao poder civil para serem punidos, até mesmo à morte.
Esta aversão ao homoerotismo é mantida no Brasil independente. O seu primeiro código penal, de 1823, determinava que “toda pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimado, e feito por fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos seus bens sejam confiscados para a Coroa de nosso Reino, posto que tenha descendentes; pelo mesmo caso seus filhos e netos ficarão inábeis e infames, assim como os daqueles que cometeram crime de Lesa Majestade”(7).
O advento do Iluminismo trouxe importantes mudanças. A razão autônoma, independente da Revelação e do ensinamento da Igreja, deve governar a sociedade e conduzir seus dirigentes. Para os iluministas a prática sexual, se exercida sem violência ou indecência pública, não devia absolutamente cair sob o domínio da lei. Por isso julgavam uma atrocidade punir a sodomia com a morte. O código napoleônico em 1810 retirou o delito de sodomia da legislação penal. Por sua influência, muitos países latinos fizeram o mesmo décadas depois, inclusive o Brasil.
A secularização impulsionada pelo Iluminismo vai modificar a própria compreensão do homoerotismo. Em 1869, o escritor austro-húngaro Karol Maria Benkert criou o termo ‘homossexualidade’, um neologismo greco-latino que formou um conceito de diversidade psico-física para substituir a sodomia. Este termo teve ampla difusão, e o homoerotismo se deslocou do âmbito religioso e moral para o âmbito biológico. Mas houve também uma patologização, que permaneceu até o final do século 20.
A Igreja Católica atualmente considera os atos de homossexualidade intrinsecamente desordenados, contrários à lei natural e sempre reprováveis. No entanto reconhece haver pessoas com tendências homossexuais profundamente enraizadas, que devem ser acolhidas com respeito e delicadeza, evitando-se para com elas todo sinal de ‘discriminação injusta’(8). Isto inclui toda violência física ou verbal, que é deplorável e merece a condenação dos pastores da Igreja onde quer que se verifiquem (9). As pessoas homossexuais são chamadas à castidade, que neste caso corresponde à abstinência sexual permanente. Basicamente, o pecado deve ser condenado, mas o pecador deve ser acolhido e ajudado a se converter.
No pontificado de João Paulo 2º, onde estas posições foram bem evidenciadas, colocaram-se também questões como a possível ‘discriminação justa’ contra os gays e a legalização das uniões homoafetivas. A Cúria Romana afirmou que a orientação sexual não constitui uma característica comparável a raça ou a tradições étnicas no que diz respeito a não discriminação. A orientação homossexual é uma desordem objetiva. É justo levá-la em conta na adoção e guarda de crianças, na admissão de professores ou técnicos esportivos, e no recrutamento militar. Os direitos humanos não são absolutos. Eles podem legitimamente ser limitados devido à ‘desordem objetiva de conduta externa’. Isto é lícito e às vezes necessário não apenas no caso de comportamentos voluntários, mas também nos casos de doença física ou mental. O Estado pode restringir direitos, por exemplo, no caso de doença mental ou contagiosa para proteger o bem comum (10).
Para a Cúria Romana ‘não há direitos à homossexualidade’. A não discriminação de gays só constitui um direito na medida em que não haja condutas homoeróticas. Caso contrário, a discriminação pode ser legítima para a proteção do bem comum. As uniões homossexuais, por sua vez, são ‘nocivas’ a um reto progresso da sociedade humana; deve haver oposição clara e incisiva ao seu reconhecimento legal, sobretudo dos políticos católicos (11).
O pontificado de Bento 16 trouxe continuidades e mudanças. Ele defende com veemência a união heterossexual como um bem insubstituível para a sociedade, e o termo ‘matrimônio’ reservado a esta forma de união. Mas quanto à união civil homoafetiva, o papa não faz restrições taxativas sobre ao seu reconhecimento legal, ao contrário de seu antecessor. Ratzinger emprega os termos ‘parece perigoso e contraproducente’(12). Ora, ‘parece’ não quer dizer necessariamente que seja; e ‘perigoso' não significa abominável ou inadmissível.
Neste pontificado, o presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha, Robert Zollitsch, declarou-se a favor da união civil de homossexuais (13). Aliás, esta união já está legalizada no país do papa desde 2002. Convém notar que dificilmente um presidente de uma conferência episcopal faria uma declaração dessas sem o respaldo interno dos outros bispos, e sem um amplo consenso da Igreja local. Há mudanças em curso que se fazem notar.
A posição da Santa Sé em favor da descriminalização da homossexualidade em todo mundo significa, no horizonte histórico, uma enorme mudança. A Igreja que no passado julgou e condenou à morte os homossexuais, agora exorta todas as nações, mesmo as muçulmanas, a eliminarem todas as medidas penais contra eles. E defende que os atos sexuais livres entre pessoas adultas não devem ser considerados um delito pela autoridade civil. Esta posição destoa inclusive do pontificado de Wojtyla. O argumento de que não há direitos à homossexualidade, e que os direitos humanos podem ser restringidos pelo Estado em caso de desordem objetiva de conduta externa, poderia justificar a criminalização da homossexualidade, ainda mais ao se considerar as uniões homossexuais como nocivas à sociedade. Mesmo que aqueles documentos da Cúria tenham a assinatura do então cardeal Ratzinger, ele como papa não está mais sob as ordens do seu antecessor, e tem mais liberdade de ação.
Há também outra mudança importante ocorrida no século passado que é pouco considerada. A Igreja Católica não usa mais o termo ‘sodomia’, mas sim homossexualidade, incorporando de certa forma a secularização do homoerotismo. A modernidade penetra na Igreja de muitas maneiras: com o reconhecimento da autonomia da ciência, da autonomia do Estado, da liberdade de consciência; com uma nova visão das Sagradas Escrituras para além da leitura literal, e aos poucos com uma nova compreensão do homoerotismo, chegando até mesmo a certo reconhecimento do direito homoafetivo.
Este processo não é tão evidente no cotidiano, onde o que chama a atenção são as posições contrárias e conservadoras. Olhando para o passado, muitas mudanças ocorridas eram inimagináveis. Mas a história é aberta e surpreendente. Se tantas mudanças aconteceram, outras mais não poderão acontecer, ainda que inverossímeis? A sociedade e a Igreja são dinâmicas, e, aos que crêem, o Espírito de Deus está vivo e atua na história.


Pe. Luís Corrêa Lima, S.J
Depto. de Teologia da PUC-Rio.
Rua Marquês de São Vicente, 225.
22451-900 Rio de Janeiro, RJ.
E-mail: lclima@puc-rio.br

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Notas:

1 - Texto apresentado no Congresso Internacional de Ética Teológica Católica (Trento, Itália, 27 jul. 2010), e publicado na Revista eclesiástica brasileira, nº282, 2011, p. 468-472.
2 - “Santa Sé contra a discriminação injusta a homossexuais”, Zenit, 2 dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
3 - Intervenção do representante da Santa Sé. 18 dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2010.
4 - “Difesa dei diritti e ideologia”, L'Osservatore Romano, 20 dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
5 - “Santa Sé contra a discriminação injusta...”, obra citada.
6 - VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Brasília: Senado Federal, 2007, p. 331-332.
7 - PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil. Bauru: Javoli, 1980, p. 26. In: TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.164.
8 - Catecismo da Igreja Católica. 1992, nº2357-2359. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
9 - CONGREGAÇÃO PARA DOUTRINA DA FÉ. Carta sobre a cura (cuidado) pastoral das pessoas homossexuais – Homosexualitatis problema. Roma, 1986, nº10. Texto em inglês disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
10 - ____. Some considerations concerning the response to legislative proposals on the non-discrimination of homosexual persons. 1992. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
11 - ____. Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais. 2003. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.
12 - Discorso di sua santità Benedetto XVI agli amministratori della regione Lazio del comune e della provincia di Roma. Roma, 11 jan. 2007. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2010.

Imagem: El Greco (Museu de Artes Decorativas de Buenos Aires)

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