domingo, 4 de agosto de 2013

Cidadania e Estado Laico: reflexões em torno do momento atual brasileiro


Excelente e profunda a análise de Ivone Gebara no Adital sobre a liberdade de consciência numa sociedade pluralista e num Estado laico. Selecionamos apenas o trecho final, mas vale ler o texto inteiro aqui.

"As crenças religiosas nos espaços políticos públicos são um fenômeno crescente em nossa época e em nosso meio. Elas invadem os espaços públicos mesmo num Estado que constitucionalmente se afirma como laico. Deputados, senadores, vereadores, juízes eleitos ou escolhidos para servir o bem comum não conseguem estar isentos de suas crenças religiosas. Suas crenças passam a ser bandeiras políticas de forma que estamos continuamente sendo vítimas de um Estado religioso constitucionalmente afirmado e reconhecido como laico. Este paradoxo pode ser observado nas muitas manifestações religiosas que temos assistido nos últimos anos para interferir em políticas públicas, sobretudo as que tocam a sexualidade humana. Vale notar, nesse particular, o uso indevido de textos religiosos para fundamentar posturas políticas através de uma retórica impressionista usada para convencer o público. Creio que isto é um delito que atenta contra a Constituição Nacional e merece ser enfrentado pelo conjunto de cidadãs e cidadãos das mais diferentes formas.

A questão é de saber como se pode colocar entre parêntesis sua crença religiosa em favor do bem comum. Ou, como crescer em consciência em relação à diversidade de situações num mundo tão complexo quanto o nosso? Como se educar para uma sociedade pluralista onde minha crença religiosa e política não é verdade para toda a sociedade? Além disso, trata-se de educar-se para discernir entre a necessidade de leis e minha escolha pessoal. Não é porque existe a legalização do aborto ou casamento homossexual que tenho que vivê-los e nem acreditar que as pessoas serão menos morais ou menos responsáveis se uma lei se efetivar. Em outros termos, não é porque o casamento homossexual ou heterossexual existe que vou me casar e nem porque o aborto é permitido por lei que vou abortar. As muitas polêmicas de nosso tempo não chegarão a lugar nenhum se não assumirmos a realidade do pluralismo de nossa nação e de nosso mundo. Pluralismo significa diversidade e diversidade significa que algumas leis devem ter validade para todos os cidadãos/ãs e outras podem ser escolhas de cada um e cada uma diante de sua própria consciência e da contingência em que está vivendo. Significa igualmente não bloquear o caminho e as escolhas de outras pessoas que vivem e pensam diferentemente de mim.

Nesse contexto as muitas soluções devem ser relativizadas, isto é, entendidas a partir da diversidade e particularidade das situações. Por exemplo, algumas soluções afirmam a necessidade de leis proibitivas em torno da sexualidade e apostam numa legislação rígida que tenha efeito punitivo das /os infratores. Outras optam por uma legislação permissiva que chame a atenção da responsabilidade individual e coletiva frente aos problemas da sexualidade. Outras ainda propõem medidas educativas com diferentes propostas. E nesse universo de observações há igualmente uma grande maioria da população que está fora do debate e da busca de soluções. Estão numa postura de desinformação política e social aguardando que um problema individual irrompa e venha motivar a sua procura imediata de soluções.

Nessa conjuntura somos chamadas/os ao discernimento e a uma reflexão que busque ver os muitos matizes de uma mesma situação. Não há mais lugar para posições absolutas, para princípios imutáveis fundados numa imagem de Deus que é facilmente manipulada pelos diferentes grupos. O desinteresse pelo pensamento é algo que nos choca. Reduz-se o pensamento crítico aos interesses individuais ou partidários sem que se reflita na humanidade plural que constitui a nação brasileira e todas as outras nações do mundo. Estamos necessitadas de uma compreensão não sectária de nossos problemas e da busca de soluções viáveis. Essa compreensão deve ser ampla para ser compatível com as diferentes visões do que se considera vida justa e bem viver. Mas, onde vamos encontrá-la? Creio que o único caminho é o diálogo incessantemente recomeçado pelos diferentes grupos, um diálogo onde desde o início, embora com nossas convicções, estejamos dispostos a ouvir os outros. Ouvir é a grande questão, pois na realidade desaprendemos a ouvir numa sociedade onde predomina o barulho das máquinas, dos muitos sons, dos muitos gritos humanos que de tão fortes não conseguem ser distinguidos pelos ouvidos de uns e de outros. Baixar a nossa voz, talvez até silenciar para ouvir a melodia da música alheia, para aprender outros sons que também constituem as notas da musicalidade humana e da sinfonia do universo. Baixar a voz para aprender a pensar, para escutar a nossa voz interior. E só então, dar alguns passos em conjunto sabendo que estamos todas/os a caminho, com possibilidades inevitáveis de tropeçar e de perder o rumo, mas estamos juntas/os na extraordinária aventura humana."

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