Escultura: Paige Bradley
No próximo domingo (26/06/11) São Paulo se tornará palco de mais um episódio da guerra religiosa travada entre os homossexuais e as Igrejas. O lema da 15ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, considerada uma das maiores do mundo, já começa a render polêmica. A relação entre religião e preconceito apimenta o tema deste ano: “Amai-vos uns aos outros: basta de homofobia”! Pela primeira vez, o evento se apropria de uma citação bíblica – e contará com representantes de grupos religiosos desfilando na Avenida Paulista (religiosos das igrejas Anglicana, Católica e Presbiteriana, além do Candomblé, Umbanda e Judaísmo confirmaram presença, segundo a organização). Um dos carros trará como tema: “Nem os santos te protegem”. O carro adornado com releitura de imagens de santos protagonizará crítica efetiva e pertinente ao veto do uso da camisinha, proposto por determinadas Igrejas. Durante uma coletiva de lançamento do tema da parada gay desse ano, a carta preparada pela organização do evento explicou a apropriação da citação bíblica, típica do universo cristão: “Respeitosamente nos apropriamos dela para pedir fim à guerra travada entre religião e direitos humanos”, dizia o manifesto.
Recentemente o admirável Congresso Nacional utilizou o veto à distribuição do denominado kit anti-homofobia como moeda de troca para a obtenção de apoio ao digníssimo Antônio Palocci, então ministro-Chefe da Casa Civil. Em nome de preservá-lo da prestação pública de sua contabilidade pessoal, a bancada evangélica contentou-se com a retirada de circulação do referido kit destinado aos alunos e educadores das escolas públicas. Votos de cidadãos que representam o Estado que os elegeu postos a serviço de interesses particulares e preconceituosos. Para esse grupo, vitória das vitórias, sobretudo se se considera o cenário desfavorável anterior, desenhado pelo reconhecimento de direitos dos casais homoafetivos que vivem união estável. Mais um capítulo desse embate crescente ao longo dos últimos anos.
Subjaz a todas essas notícias a crise de referenciais e a confusão dos espíritos que paira sobre a sociedade. Tal crise nutre-se, de um lado, pelo saudosismo da posse da verdade e da palavra última (Igrejas e instituições); de outro, pela experiência da liberdade proporcionada pelo enfraquecimento das estruturas estáveis da moralidade de outrora a assegurar a realidade. O conflito hermenêutico em questão traduz no campo da afetividade/sexualidade, crise que perpassa a política, o Estado, as religiões e escoa pelas diversas dimensões da vida social.
A feiticeira de toda essa selva pode ser classificada como a vontade de poder das Instituições a insistir legitimar ordem vigente para todos e violentar as liberdades dos indivíduos. Gustavo Botandini, filósofo italiano, sustenta que a Igreja quando minoria, fala de liberdade; quando maioria, advoga a verdade. A verdade em jogo não quer ser apenas mera normatividade direcionada aos fiéis “ad intra”. Exercita a vocação violenta ao impor seus próprios princípios aos não fiéis e fiéis de outras denominações “ad extra”. Cabe a pergunta: o que há de evangélico em pressionar o Estado a fim de se proibir nacionalmente o casamento gay, a criminalização da homofobia...? A feiticeira revela sua face mais perversa no ataque constante àqueles que já lutam e sofrem cotidianamente exclusão, intolerância e marginalização. Reconhece-se como evangélica a atitude missionária de se anunciar a mensagem cristã a todos os povos e apresentar-lhes horizonte de sentido. Na mesma perspectiva, catequizar e instruir os convertidos. À luz das reprováveis violências já praticadas ao longo da História, há de imperar a máxima do respeito às diferenças. Modelar e impor padrões comportamentais, por vezes não vividos por parcela significativa dos próprios representantes das Igrejas, soa bastante hipócrita e anti-evangélico. Talvez um dos carros da parada gay do próximo domingo pudesse explorar a metáfora bíblica dos sepulcros caiados. Ironias à parte, a guerra santa sofrida pelas minorias GLBT inspira paradas como as do próximo domingo, comprometidas não com o ataque aos dogmas das Igrejas (problema de seus adeptos), mas com a defesa dos direitos humanos.
Os meios de comunicação manipulam as informações e propagam os germes do acirramento dos ânimos entre as partes. Não possibilitam a existência de uma vida mais autêntica, provida de transparência e propícia à discussão pró-ativa. Antes confundem mediante o simulacro de imagens distorcidas e ruídos desafinados. Festival de luzes, cores e formas a ludibriar os sujeitos sociais. Os feitiços dos meios de comunicação propagam-se com voracidade: ocultamento e ou distorção de temas primordiais, difusão da racionalidade do consumo, legitimação de egoísmos e individualismos... Na interatividade da leitura, compete ao leitor ampliar essa vasta lista.
A imagem do guarda-roupa apresenta grande ambiguidade. Negativamente, remete ao aprisionamento dos desejos e da identidade, evoca sufocamento e escuridão. Metáfora pejorativa sobre a atitude de se assumir as pulsões sexuais e “sair do armário”. Entretanto, há de se ir além dessa simples representação, já desgastada e carente de sentido, e na acuidade perceber a imagem do guarda-roupa sob ocular positiva. Enquanto tal, o guarda-roupa expressa apelo à criatividade, abertura às diferenças, possibilidade de conquista da autonomia. Representa, como intuído da obra de C. S. Lewis, o convite a se passar à outra margem. As portas do guarda-roupa pós-moderno conduzem a novos mundos e abrem-se a um sem fim de possibilidades tolhidas anteriormente pelo império arbitrário da verdade objetiva. Traduzem-se no horizonte possível de exercício da relacionalidade e da convivência pacífica. Portas talhadas pela escuta da filosofia hermenêutica e da crítica à interpretação única da realidade, bem como da verdade já dada e esgotada historicamente de uma vez por todas. Guarda-roupa a abrigar diversidade de estilos, modelagens, tendências e muito mais propício à coexistência do múltiplo. Para alguns críticos, pobre pecador relativista; para outros, via possível de integração das diferenças e convivialidade no respeito ao uso da autonomia e da liberdade pessoal do sujeito.
Para alem da feiticeira e do guarda-roupa, ruge o leão da vitalidade, do dinamismo e do vigor da concretização da instauração de ordem existencial mais humana e fraterna. O desafio de vislumbrar os raios do Sol a incidir sobre a juba do leão permanece tarefa atual e mundo possível. Forte não pela proclamação do unívoco e incontestável, mas pela abertura dialógica e acolhedora das mudanças históricas em curso. O leão se nos apresenta tanto mais cristão e autêntico, quanto mais liberto do império metafísico da verdade, for capaz de interpelar o sujeito a aventurar-se pelas brechas do guarda-roupa, criticamente se posicionar perante os decretos da feiticeira e se tornar capaz de eleger conscientemente suas opções fundamentais de vida.
- Omar Lucas Perrout Fortes de Sales
Doutorando em Teologia Sistemática na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, MG
Reproduzido via IHU, com grifos nossos Tweet
3 comentários:
Infelizmente, um texto bem escrito e com bons argumentos (pelo menos pra quem é cristão), é arruinado logo na primeira frase! Não estou, nem nunca vi os homossexuais em guerra contra os religiosos! Nem há que se falar em guerra quando a relação é puramente de opressão. Quando as religiões detinham o poder, éramos simplesmente varridos pra debaixo do tapete, e agora, que estertoram, algumas lideranças inescrupulosas lançam mão de um terrorismo idológico. E mesmo assim, não vejo a parcela LGBT atacando a fé de ninguém! Onde a guerra? Por acaso estiveram os escravos em guerra com os senhores do Brasil colônia? Ou foi uma guerra entre judeus e nazistas? Acho que não. As religiões oprimem quando podem, e maculam quando perdem poder, e mesmo achando que o mundo seria um lugar melhor sem elas, não estou em guerra com nenhuma religião!
Absolutamente pertinente o seu comentário, Marcos! A nosso ver, você está coberto de razão em questionar generalizações como essa, que pasteurizam a diversidade de experiências, sentimentos e opiniões.
Acreditamos porém que o autor se refira à oposição entre os dois campos, cada vez mais vivida como um antagonismo irreconciliável e mutuamente excludente. Talvez se refira, também, ao nível de irritação e ressentimento que se instalou nos dois pólos. Talvez, nesse sentido - em termos do conflito deflagrado, da irascibilidade - se possa falar em uma guerra, não?
Sobretudo porque, infelizmente, quando a lógica da exclusão, da intolerância e da falta de diálogo se instala de um dos lados, se o outro lado não prestar muita atenção, logo acabará se instalando em seu campo também. E, como sabemos bem, a "violência" não está só no ato concreto de agressão, mas também no ódio expresso nas palavras e carregado no coração.
Por sorte, acreditamos firmemente que, por mais que alguém que detenha algum poder possa exercê-lo contra nós, cabe a nós escolher como lidar com isso: se nos mantendo dentro da mesma lógica da violência e alimentando o ódio, ou se simplesmente nos atendo à não-violência e nos mantendo abertos ao diálogo. É nossa convicção que, só rompendo com a lógica da agressão, poderemos produzir uma sociedade efetivamente mais fraterna e justa para todos.
Porque, no fim das contas, não é disso que se trata? O que importa mais: se vamos ganhar "nós" ou "eles", ou se vamos construir uma sociedade plural, onde todas as identidades - de gênero, de raça, e, por que não?, de religião - possam conviver e dialogar?
Um forte abraço! :-)
Nossa que texto incrível.
E Marcos, especificamente ele se referia aos meios de comunicação que "jogam lenha na fogueira" e tudo que se colhe são cinzas.
Mas, a reflexão feita pela Equipe DC foi ótima:
"Porque, no fim das contas, não é disso que se trata? O que importa mais: se vamos ganhar "nós" ou "eles", ou se vamos construir uma sociedade plural, onde todas as identidades - de gênero, de raça, e, por que não?, de religião - possam conviver e dialogar?"
Grande abs!
Rodolfo Viana
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