terça-feira, 23 de julho de 2013

O único necessário



Uma bela reflexão sobre a liturgia do último domingo.

Somos hóspedes de uma casa. Mais que hóspedes, somos já parte da família. Nossa casa é esta: este espaço físico e humano nos abrigando, esta comunidade cristã da qual fazemos parte, esta assembleia na qual vivemos uma experiência de fé. Isto é, acolhidos por Deus na pessoa de cada um de nós, aqui reunidos, sentimo-nos um corpo: corpo eclesial de Cristo. Por isso que todos aclamaram há pouco, em alto e bom tom: “Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo”.

Nesta experiência de povo de Deus reunido, unimo-nos desde já aos milhares de jovens que nesta semana se reúnem para a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro. Que o Espírito Santo de Deus ilumine este evento e a todos fortaleça para o testemunho da fé em Cristo. (...)

O Evangelho fala de uma visita de Jesus a Marta e Maria (cf. Lc 10,38-42). A relação de Jesus com elas (e com Lázaro, o irmão delas que aparece no evangelho de João) era de muita familiaridade de amizade (cf. Jo 11,1-44; 12,1-8), o que aparece também pelo tom da conversa de Marta com Jesus hoje (Lc 10,40).

Trata-se de um Jesus que continua sua viagem rumo a Jerusalém. No início desta viagem, ele não fora acolhido num vilarejo da Samaria (Lc 9,51-56). Entretanto, no domingo passado, esse mesmo Jesus, não acolhido em Samaria, nos trouxe precisamente um samaritano como exemplo de alguém que de fato sabe acolher; que se faz “próximo” dos que precisam de ajuda (Lc 10,30-37)! Conclusão, o não acolhido – Jesus – aparece como o melhor acolhedor, pois é capaz de acolher o próprio inimigo!

Hoje vemos Jesus entrando “num povoado” (Lc 10,38), onde vive a experiência de ser acolhido. E quem o acolhe “em sua casa”? Uma mulher, de nome Marta (v. 38). Ela tem uma irmã de nome Maria que, sentada aos pés de Jesus, “escutava a sua palavra” (v. 39). Esta, numa atitude típica de discípula diante do mestre, frontalmente contrastava com sua irmã “ocupada com muitos afazeres” (v. 40).

Marta se queixa com Jesus porque sua irmã a deixa sozinha, com todo o serviço. Jesus, por sua vez, amorosamente chamando-a duas vezes pelo nome, a alerta para o fato de estar dominada pela “preocupação” e “agitação” por muitas coisas (v.41). E aproveita para lhe mostrar qual é a “única coisa necessária” (v. 42) – escutar Jesus – e qual é a atitude que convém: a de Maria (v. 39) (1). Em outras palavras, para não se deixar contaminar pela “preocupação” e “agitação” com os muitos afazeres, e para curar o decorrente estresse e mau humor pelo desmedido esforço, Marta precisava dar um passo a mais, a saber: mesmo servindo, aprender a focar-se no “único necessário”, isto é, centrar-se na serenidade do mestre em arte de acolher, ali presente, e aprender com ele. “Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (v. 42): assimilar a atitude do próprio hóspede Jesus que, em suas andanças, por suas palavras e gestos, vem demonstrando o quanto Deus é mestre na arte de acolher.

A presente experiência de acolhida vivida nesta história nos traz à lembrança outra, lá do Antigo Testamento, como ouvimos na primeira leitura: a experiência de Abraão (cf. Gn 18,1-10a). Abraão acolhe generosa e despreocupadamente em sua tenda três homens em viagem. Gratuitamente e, por isso, sem se estressar, ele oferece o melhor que podia para os hóspedes. É que Abraão intuiu na pessoa daqueles desconhecidos viajantes a presença do próprio Senhor e Deus. E o resultado foi este: a atitude gratuita de Abraão mesclou-se, comungou, com a gratuidade do seu Senhor. E o que aconteceu? Deus lhe garante o que praticamente era impossível: “Voltarei, sem falta, no ano que vem, por este tempo, e Sara, tu mulher, já terá um filho” (v. 10a).

Quem, então, fará a grata experiência de comunhão com a gratuidade de Deus? Esta pergunta é elaborada e respondida pelo Salmo 14, cujo refrão assim hoje cantamos: “Senhor, quem morará em vossa casa?” (v. 1a).

Toda essa imensa gratuidade de Deus que nos acolhe, foi definitivamente revelada em Cristo Jesus, pela sua encarnação, vida, sofrimento, morte, ressurreição, dom do Espírito, e contínua presença no seu corpo eclesial, a Igreja. Como ouvimos na segunda leitura, pela boca do apóstolo Paulo, Deus quis manifestar como é rico e glorioso entre as nações este mistério, a saber, a presença de Cristo em nós, a esperança da glória. Por isso, até o sofrimento por que passamos não é mais em vão. Somos plenamente acolhidos por Deus, em Cristo e no Espírito Santo.

“Um grande mal em nossa sociedade, e também na Igreja, é o ativismo, a falta de disposição para aprofundar o essencial, sob o pretexto de tarefas urgentes” (2).

Nesse sentido, Jesus é um exemplo para todos nós. Sua pessoa está prioritária e permanentemente focada no modo de ser do Pai. A partir do hábito desta escuta é que ele possui uma atitude de serena e saudável acolhida de tudo e de todos. E é a partir daí que “Jesus observa a Marta que ela anda ocupada e preocupada com muitas coisas, enquanto uma só é necessária. Essa observação não é uma recusa da hospitalidade, mas indica uma escala de valores: a melhor parte é a que Maria escolheu! O que esta faz é fundamental e indispensável: escutar. O resto (as correrias pastorais, as reuniões) é importante, mas deve ter fundamento no escutar. Jesus censura Marta não porque ela cuida da cozinha, mas porque quer tirar Maria do escutar, para fazê-la entrar no ritmo de suas próprias ocupações. Marta não conhecia a escala de valores de Jesus” (Ibid.).

Podemos perceber pela segunda leitura de hoje que foi pela identificação profunda do com Cristo que Paulo tirou a força para seu surpreendente apostolado. “Gente ocupada é o que menos falta. Mas sabemos muito bem que toda essa ocupação não gira em torno daquilo que é fundamental. Dá até pena ver certas pessoas complicarem sua vida com mil coisas de que dizem que simplificam a vida. Ao lado delas encontramos o pobre, o lavrador, o índio, vivendo uma vida simples, mas com muito mais conteúdo e, sobretudo, com um coração sensível e solidário” (Ibid.).

A exemplo do nosso mestre Jesus, “importa acolher (a Deus, a Jesus, aos outros) em primeiro lugar no coração. Só então as demais ações terão sentido. Isso vale na vida pessoal e também na vida comunitária. Comunidades que giram exclusivamente em torno de preocupações e reivindicações materiais acabam esvaziando-se, caem em brigas de personalismo e ambição. Mas comunidades que primeiro acolhem com carinho a palavra de Jesus num coração disposto saberão desenvolver os projetos certos e por a palavra de Jesus em prática. ‘Buscai primeiro o Reino de Deus...’” (Ibid.).

Que Deus nos ajude a vivermos este espírito do Evangelho trazido por Jesus. Por isso que, logo mais, uma vez alimentados pela Palavra e pela Ceia do Senhor, concluiremos com esta oração: “Ó Deus, permanecei junto ao povo que iniciastes nos sacramentos do vosso reino, para que, despojando-nos do velho homem, passemos a uma vida nova” (Oração depois da comunhão de hoje ).

Sim, que pela força desta Eucaristia, na qual o Pai nos acolheu como corpo eclesial de Cristo, possamos viver a atitude de Maria para que, empenhados como Marta mas conectados ao “único e necessário”, que é a Palavra reveladora do Pai, trabalhemos com serenidade e paz pelo bem da humanidade.

- Frei José Ariovaldo, OFM

(1) J. M. Romaguera. El evangelio en medio de la vida. Domingos y fiestas del ciclo C. Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica, 2006, p. 140. [Emaús maior 2]
(2) J. Konings. Liturgia dominical... Petrópolis: Vozes, 22003, p. 436

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