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A reflexão a seguir é de Raymond Gravel, padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, Domingo do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Cristo (11 de junho de 2012). A tradução é de Susana Rocca.
Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.
Referência bíblica:
Evangelho: Mc 14,12-16.22-26
Hoje é a festa do Santíssimo Sacramento do Corpo e Sangue de Cristo, é a festa da Eucaristia, a Festa de Deus: a festa da presença do Cristo da Páscoa na Eucaristia tem duas mesas: a mesa da Palavra proclamada, interpretada e atualizada, e a mesa da partilha do pão e às vezes do vinho, para significar a comunhão entre nós, com Cristo Ressuscitado...
Nós que vamos à missa regularmente temos que nos perguntar: O que é a Eucaristia? Será um rito no qual nós participamos sem nos vincular com os outros membros da comunidade?
No comentário da Revista Signes d’aujourd’hui, o teólogo francês Patrick Jacquemont escreve o seguinte: “A Ceia é uma refeição e não um altar. Os discípulos foram preparar a mesa. Jesus, na véspera de sua morte, comeu com os discípulos. Ele partiu o pão. Não se trata somente de multiplicar os pães, mas ele quis manifestar uma presença: “Tomem, isto é o meu corpo” (Mc 14,22). Jesus está presente e ele promete está-lo cada vez que o pão for partido. É o que foi realizado na noite da Páscoa ao redor da mesa de Emaús e o que se realiza ainda hoje, de eucaristia em eucaristia, de missa em missa”.
Se entendo bem o que escreveu Patrick Jacquemont, a Eucaristia é uma refeição que une pessoas diferentes, mas que partilham uma mesma fé, uma mesma esperança, uma mesma amizade, uma mesma família, e essa comida se inscreve no quadro de uma festa: é a comida pascal. E no interior dessa refeição, há um rito particular que exprime a presença do Cristo Ressuscitado...
Preparando a homilia deste domingo, eu fiz duas constatações:
1. Nas nossas missas, nós perdemos o marco primitivo da refeição... Podemos compreender essa realidade sobre o plano histórico, sendo que tivemos que adaptar as nossas missas às grandes assembleias que queriam celebrar a Eucaristia de forma regular e com muita gente... É totalmente correto, sempre que não se perca o sentido do gesto que faz...
Então, a questão que vem é a seguinte: qual é o sentido da Eucaristia? A Eucaristia nos leva à Páscoa, isto é, nos leva a esse evento fundador da fé cristão: a morte-ressurreição de Jesus. Então, celebrá-la é fazer memória do Cristo que nos libera do sofrimento e da morte, dando ele mesmo a sua própria vida por nós...
Patrick Jacquemont continua: “Jesus está presente na eucaristia para que nós vivamos da sua vida que explode na manhã da Páscoa. Jesus nos dá a sua vida para que nós a compartilhemos pela nossa vez”... É o que quer dizer o “façam isto em memória de mim”. A mão que recebe o Corpo de Cristo está prestes a dar o pão ao que tem fome. Os lábios que bebem do cálice estão livres para beijar o portador de HIV. O Corpo e o Sangue de Cristo são o santo Sacramento da refeição que nos faz viver no Ressuscitado.
Não é por nada que Santo Agostinho, no século IV, dizia: “Tornem-se aquilo que comem; vocês comem o Corpo de Cristo, tornem-se o Corpo de Cristo”. E se nós conservamos o pão eucarístico, é para ir até aqueles e aquelas que são incapazes de vir na missa, por causa da sua saúde, afim de que também eles possam unir-se com os que participam dela. É só por essa razão que se pode conservar o pão consagrado. A Ceia é uma refeição e não um altar. O pão, então, está feito para ser partilhado e comido, e não para ser exposto e adorado.
Atualmente, em nossas eucaristias, nós perdemos um pouco o sentido da festa. Cristo ressuscitou e ele está vivo através de nós, seus discípulos. E, porém, as nossas missas parecem mais enterros do que festas. É evidente que nós nos lembramos da passagem que Jesus teve que fazer para ressuscitar, mas ele ressuscitou. Por que parece que ele não está? Temos mais a impressão de que estamos na Sexta-Feira Santa do que no Domingo de Páscoa...
É verdade que chegamos à missa com as nossas feridas, os nossos limites e fraquezas... Mas também é verdade que, partilhando com os outros aquilo que somos, nós podemos esperar compartilhar descanso, cura e libertação de tudo o que nos impede viver. Se Cristo ressuscitou, ele nos ressuscita também... Essa é a esperança cristã...
Por outro lado, há um detalhe no evangelho que é muito importante: No momento em que Marcos escreve o evangelho estamos em plena perseguição em Roma... Os cristãos estão, sem dúvida, desanimados pela situação... Se Jesus ressuscitou e ele está presente na comunidade cristã, como explicarque tudo esteja indo tão mal? Pedro também foi crucificado e Paulo foi decapitado... Será que dá para continuar aguardando?
E aí Marcos tenta retomar o fio dos eventos respondendo à confusão dos cristãos à comunidade: “No primeiro dia dos Ázimos, quando matavam os cordeiros para a Páscoa, os discípulos perguntaram a Jesus: ‘"Onde queres quevamos preparar para que comas a Páscoa?’"(Mc 14,12). É uma inquietação, uma dúvida que se instala; os discípulos estão preocupados pelo que acontece em Jerusalém que vem de ser destruída,e em Roma onde os cristãos foram perseguidos.
À pergunta feita por Marcos, o Cristo do evangelho responde: “Jesus mandou então dois de seus discípulos, dizendo: ‘Vão à cidade.Um homem carregando um jarro de águavirá ao encontro de vocês. Sigam-no’” (Mc 14,13). Seguramente não é corrente que um homem leve um cântaro de água... Na época, eram as mulheres as que faziam isso... Então, por que um homem?
O exegeta francês Jean Debruynne explica esse detalhe, dizendo que o caminho da fé sai do ordinário... É um caminho novo, que não é evidente... Se pudermos seguir esse homem que leva um cântaro de água, é sinal de que existe sempre um caminho possível para viver a sua fé. Esse caminho não é habitual; ele é novo. Não foi traçado com antecedência. É na novidade que podemos descobri-lo e pegá-lo. Então, sempre é possível viver a sua fé, mas devemos viver de outra maneira. Jean Debruynne escreveu: “É um caminho-surpresa, um caminho surpreendente... Certamente Jesus nos anuncia também o caminho da sua cruz, mas, ao mesmo tempo, ele nos anuncia também o caminho da fé. Não é porque nós estamos um pouco perdidos que a fé não existe. Não se trata de outra fé, mas sim de outra maneira”.
O que me fica disso, hoje, é o que nós estamos em outro contexto histórico diferente daquele de Marcos, mas, ao mesmo tempo, há algo parecido. Os crentes atualmente esvaziaram a missa; se voltaram indiferentes; eles não se reconhecem nas nossas assembleias litúrgicas e o conteúdo das nossas celebrações não lhes diz absolutamente nada. Então, se queremos dar-lhes o gosto de celebrar, talvez tenhamos que propor outros caminhos e seguir outros portadores de água, diferentes dos que eles estão acostumados. Talvez as nossas Eucaristias tornar-se-iam mais significativas e iriam interpelar mais os crentes atuais. Uma coisa é certa: o pão que repartimos, que nós partilhamos, que nos fala da presença do Ressuscitado, esse pão é feito para ser comido, e não para ser exposto e adorado. Tweet
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