segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
Nos recusamos a condenar ''o gênero'', afirmam católicos e católicas franceses
Recusar a tomar conhecimento de certas obras ou de trocar argumentos com certos parceiros sem mostrar um a priori benevolente e propenso ao debate não é a melhor maneira de progredir rumo à verdade.
A opinião é de Anne-Marie de la Haye, secretária do Comité de la Jupe, grupo de católicos e católicas leigos franceses, em artigo publicado no sítio da entidade, 27-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Somos cristãs e cristãos, vinculados à mensagem do evangelho, e vivemos fielmente esse vínculo no seio da Igreja Católica. A nossa experiência profissional, os nossos engajamentos associativos e as nossas vidas de homens e de mulheres nos dão a competência para analisar as evoluções das relações entre os homens e as mulheres nas sociedades contemporâneas, e para discernir os sinais dos tempos.
Tomamos conhecimento das recomendações do nosso Santo Padre, o Papa Bento XVI, dirigidas ao Pontifício Conselho Cor Unum, nas quais ele expressa a sua oposição contra o que ele chama de "teoria do gênero", colocando-a no mesmo plano das "ideologias que exaltam o culto da nação, da raça, da classe social". Consideramos essa condenação infundada e difamatória. A recusa que a acompanha de colaborar com toda instituição suscetível a aderir a esse tipo de pensamento é, a nosso ver, um erro grave, tanto do ponto de vista do caminho intelectual, quanto da escolha das ações tomadas a serviço do evangelho. Afirmamos aqui, com a máxima solenidade, que não podemos subscrevê-la.
Em primeiro lugar, ela é esterilizante. Com efeito, no domínio do pensamento, recusar a tomar conhecimento de certas obras ou de trocar argumentos com certos parceiros sem mostrar um a priori benevolente e propenso ao debate não é a melhor maneira de progredir rumo à verdade. O que teria acontecido se Tomás de Aquino tivesse se abstido de ler Aristóteles, com o pretexto de que ele não conhecia o verdadeiro Deus e que as suas obras lhe haviam sido transmitidas por tradutores muçulmanos?
Além disso, in loco, saber se se deve ou não colaborar com atores animados por ideias diferentes das nossas é uma decisão que só pode ser tomada naquele lugar e naquele determinado momento, em função das forças políticas e da urgência da situação. O que teria acontecido, a propósito da luta contra o nazismo e o fascismo, se os resistentes cristãos tivessem se recusado a lutar ao lado dos comunistas, ateus e solidários de um regime criminoso?
Vamos agora ao fundo da questão: deixemos de permitir que se diga que a noção de gênero é uma máquina de guerra contra a nossa concepção de humanidade. É falso. Ela é o resultado de uma luta social, isto é, a luta pela igualdade entre homens e mulheres, que se desenvolveu há cerca de um século, inicialmente nos países desenvolvidos (Estados Unidos e Europa), e da qual os países em desenvolvimento estão agora começando a sentir os frutos.
Essa luta social estimulou a reflexão de pesquisadores em inúmeras disciplinas das ciências humanas; essas pesquisas ainda não terminaram e não constituem, de fato, uma "teoria" única, mas sim um campo diversificado e sempre em movimento, que não deveria ser reduzido algumas de suas expressões mais radicais.
O verdadeiro problema, portanto, não é o que se pensa da noção de gênero, mas sim o que se pensa da igualdade homem/mulher. E, de fato, a luta pelos direitos das mulheres coloca novamente em discussão a concepção tradicional, patriarcal, não igualitária, dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres na humanidade. Nas sociedades em desenvolvimento, em particular, a situação das mulheres ainda é tragicamente não igualitária. O acesso das mulheres à educação, à saúde, à autonomia, ao controle da sua fertilidade se depara com fortes resistências das sociedades tradicionais.
Pior ainda: em alguns lugares, é constantemente ameaçado até mesmo o simples direito das mulheres à vida, à segurança e à integridade física. Não se pode, como faz o papa nos seus discursos sobre esse assunto, fingir que se saúda como autêntico progresso o acesso das mulheres à igualdade dos direitos e, ao mesmo tempo, continuar defendendo uma concepção de humanidade em que a diferença dos sexos implica uma diferença de natureza e de vocação entre os homens e as mulheres. Há nisso uma distorção intelectual insustentável.
Como negar, de fato, que as relações homem/mulher são objeto de aprendizagens influenciadas pelo contexto histórico e social? Fingir conhecer absolutamente, e com o desprezo de toda pesquisa realizada com as aquisições das ciências sociais, qual parte das relações homem/mulher deve fugir da análise sociológica e histórica manifesta um bloqueio do pensamento nada justificável.
Por trás desse bloqueio do pensamento, suspeitamos que há uma incapacidade de tomar partido na luta pelos direitos das mulheres. Porém, essa luta não é, talvez, a dos oprimidos contra a sua opressão, e o papel natural dos cristãos talvez não é o de derrubar os poderosos de seus tronos?
Levantar-se a priori contra até mesmo o uso da noção de gênero é confundir a defesa do evangelho com a de um sistema social particular. A Igreja, de fato, cometeu esse erro há dois séculos e meio, confundindo defesa da fé e defesa das instituições monárquicas, e mais tarde dos privilégios da burguesia. Refazendo um erro semelhante, nós nos condenaríamos a uma marginalização ainda maior do que a que já nos encontramos.
Como não temer que essa condenação apressada seja uma das correntes de uma cruzada antimodernista que visa a demonizar uma evolução contrária às posições adquiridas pela instituição?
É por isso que, com profunda preocupação, nós apelamos aos fiéis católicos, aos padres, aos religiosos e religiosas, aos diáconos, aos bispos, para que evitem à nossa Igreja esse impasse intelectual e para que saibam reconhecer, por trás de uma disputa sobre termos, o que verdadeiramente está em jogo na luta pelos direitos das mulheres e o lugar certo da sua Igreja nessa luta evangélica.
Imagem: Tarsila do Amaral.
Fonte Tweet
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