"Por que São Paulo, na carta aos Romanos, afirma que a homossexualidade é anti-natural?"
A única passagem do Novo Testamento que faz menção a relações entre pessoas do mesmo sexo está no primeiro capítulo da carta aos romanos (Rm 1, 26-27 [1]).
Usamos a expressão “relações entre pessoas do mesmo sexo” pois seria discrepância histórica aplicar o termo “homossexualidade” à passagem. Sempre houve relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, mas a compreensão de homossexualidade só surgiu no século XIX (é relativamente recente a consciência de ser uma “orientação” independente de escolha e elemento constitutivo da interioridade, do “eu” de muitos indivíduos).
Antes de fazer uma aplicação direta do texto de Paulo – escrito no século I – para os nossos dias – vinte séculos depois –, temos que considerar como eram entendidas as relações entre pessoas do mesmo sexo naquela época e compreender os conceitos usados na passagem em questão.
Um texto reflete a maneira que o autor vivencia a realidade de seu tempo. Não se deve aplicar a escritos bíblicos o entendimento atual da realidade, e sim deixar que eles falem por si. É cotejando a realidade de hoje com a de então que nossos dias podem ser iluminados pelas palavras do texto. Tal postura em relação à interpretação da Bíblia foi recomendada pelo Concílio Vaticano II [2].
Vejamos o caso da epístola aos romanos. Diz o texto: “Por isso Deus os entregou a paixões aviltantes: suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher , arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens e recebendo em si mesmos a paga da sua aberração.”
São Paulo escreve para uma comunidade majoritariamente formada por cristãos vindos do judaísmo residentes em Roma. Na capital do imenso império de numerosos povos, era comum o convívio de diferentes culturas e diversas crenças, ainda que houvesse uma religião oficial do Império.
Em pleno “caldeirão” de povos e culturas, Paulo realça a identidade judaico-cristã da comunidade para a qual escreve. Em versículo anterior à passagem destacada, ele lembra que, à diferença de todos, eles não são idolatras, pois não trocaram a “Glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros, quadrúpedes e répteis.” (Rm 1, 23). Como conseqüência da idolatria, Deus entregou homens e mulheres à impureza sexual.
Tais relações de homem com homem e entre mulheres são impuras porque abandonam o uso natural do sexo oposto: são anti-naturais. Aqui está uma questão importante. A palavra “natureza” possui diversos significados de acordo com o contexto em que é empregada. Quando falamos de “natureza humana”, entendemo-la como a dimensão do ser humano que é radicalmente a mesma para todas as pessoas: anatomia, processos biológicos etc. Mas ser humano é muito mais do que possuir certa anatomia ou compartilhar os mesmos processos biológicos. Ser humano significa também, ou principalmente, fazer uso da razão e da capacidade de se relacionar. E, por meio da inteligência e das relações estabelecidas (o conjunto total de relações de um grupo é a sociedade), o ser humano acaba atribuindo diferentes significados e experimentando de formas diferentes o que diz respeito à parte biológica de sua vida.
Um animal ou uma planta se reduz basicamente a seus instintos. Podemos dizer que essa é a sua natureza. Já a natureza do ser humano é dar significado e interpretar tudo na vida de acordo com um conjunto de valores que vai sendo construído em sociedade. Processos biológicos como nascimento, reprodução, doença e morte, comuns a todas as pessoas, são interpretados de formas muito diferentes conforme a cultura de cada um. O “natural” no ser humano é atribuir sentido a tudo. Aquilo que faz parte da natureza humana não é simplesmente algo objetivo, explícito e presente em todos os homens e mulheres de forma clara. O natural é o sentido, os significados que foram sendo atribuídos a cada acontecimento da vida e que se tornaram a interpretação padrão destes.
A partir deste enfoque, é preciso conhecer o que Paulo, a cultura judaica e a cultura romana entendiam como “naturais” aos homens e às mulheres. Somente assim poderemos compreender a classificação das relações de pessoas com outras do mesmo sexo como “anti-naturais”.
A diferença entre homens e mulheres é natural, anatômica, orgânica. No entanto, a maneira como essa diferença foi interpretada ao longo da história, em cada cultura, dá origem aos papéis masculino e feminino em cada sociedade.
Até bem pouco tempo atrás, o papel social da mulher era ligado à família, ao cuidado dos filhos e do marido, enquanto o homem era visto como o provedor da casa e o chefe de família. Explicava-se: cada um desses papéis era “natural”. Por causa de sua natureza específica, homens e mulheres teriam propensão natural para essas atividades. Com o Feminismo e outras transformações sociais, percebeu-se que o que parecia natural era, sim, fruto de costumes e tradições que há séculos estabeleciam o “natural” a cada um dos gêneros sexuais (masculino e feminino). A partir de então, surgiram novas matizes na maneira de ambos se posicionarem na sociedade.
O exemplo do papel social da mulher pré-Feminismo confirma a dependência de convenções culturais do que seja a “natureza humana” em suas especificidades e torna mais claro o sentido do texto de Paulo na carta aos Romanos. O que se esperava dos homens e mulheres, qual era o papel do masculino e do feminino que fazia as relações entre pessoas do mesmo sexo serem consideradas anti-naturais?
Não há como expor aqui todo o processo histórico que resultou na concepção do homem possuir uma natureza específica que o habilitava para desempenhar um papel na sociedade que não poderia ser ocupado pela mulher e vice-versa. Neste sentido, a natureza do homem era pensada com os seguintes atributos: atividade, dominação, controle, penetração, preocupação com a honra da família, representante da família fora do círculo familiar. Já a natureza feminina era entendida como passiva, subordinada, controlada, penetrada, preocupação com a vergonha da família, representante da família no interior do círculo familiar.
Acreditava-se que o sêmen era um “ser humano em proporções mínimas”: a vida surgia exclusivamente da semente do homem. A mulher era o campo que preparava tal semente. Sua função era exclusivamente receber, acolher o sêmen. Este caráter de atividade masculina e passividade feminina perfazia todos os papéis sociais de homens e mulheres.
E está aí o motivo das relações entre pessoas do mesmo sexo serem consideradas anti-naturais. A mulher que assumia o papel ativo em uma relação com outra mulher e o homem que se tornava passivo negavam a sua própria natureza de homem e mulher como entendida na época. Além disso, no caso dos homens, tal relação significava o desperdício do sêmen, o que era praticamente um crime, visto o sêmen já ser uma pessoa, ainda que não desenvolvida. Talvez assim explique-se a inexistência de qualquer condenação à relação entre mulheres no Antigo Testamento: neste tipo de relação, não há desperdício do precioso sêmen do povo eleito por Deus.
Se os processos biológicos e a anatomia permanecem inalterados ao longo dos séculos, o mesmo não acontece com a maneira como é compreendido o que seja o especificamente masculino e o feminino nas sociedades.
Relações entre pessoas do mesmo sexo (não entendidas a partir da interioridade de cada um, mas do papel social esperado) são condenadas, na carta aos Romanos, como desvio. Uma resultante da idolatria religiosa dos pagãos, que subverte o que era próprio e aparentemente imutável: a compreensão do papel do homem e da mulher.
A consciência atual de que as categorias “masculino” e “feminino” são resultantes, em grande parte, de processos culturais deixa claro que o “eu” não é determinado inteiramente por um papel desempenhado na sociedade. Considera-se, primeiro, a interioridade.
A ausência de um “eu” pessoal na antiguidade capaz de transmitir aos outros a identidade mais verdadeira faz com que o ser humano seja entendido meramente de acordo com o papel social construído para ele ao longo dos séculos, definido por sexo, cor, classe social. Quando a sociedade espera de todos papéis heterossexuais, e se são estes papéis que determinam quem cada um “é”, as relações com pessoas do mesmo sexo só podem ser compreendidas enquanto desvio da norma.
Quando se aceita, em sentido amplo, que a natureza do homem corresponde à atividade e a da mulher, à passividade, se é contrário não apenas a relações entre pessoas do mesmo sexo mas também a qualquer mudança no papel social que desafie essa maneira de entender o masculino e o feminino. Por exemplo, se é contra mulheres que trabalham fora ou os pais que mantém uma relação mais afetuosa com os filhos.
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Desse modo, se no passado a visão filosófica, teológica, moral e jurídica concentrava-se nos atos homossexuais, hoje em dia as ciências humanas nos trazem a compreensão de que cada pessoa é marcada por sua irrepetibilidade. Como tal, cada um "merece a nossa acolhida, respeito e amor. Independentemente da conduta ou orientação sexual, em cada um de nós está impressa a fragilidade da vida. Todo ser humano possui em si as marcas do Divino Criador. Somos todos filhos do mesmo Deus, iguais na mesma fraternidade. Compreender a homossexualidade e suas manifestações no mundo e, ao mesmo tempo, combater a homofobia é tarefa de todos os cristãos de boa vontade. Não podemos mais tolerar a ignorância: ela é a mãe de todos os preconceitos e ainda mata, com palavras, sorrisos e balas." [3]
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1. Rm 1, 26-27 - “Por isso Deus os entregou a paixões aviltantes: suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher, arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens e recebendo em si mesmos a paga da sua aberração”.
2. Concílio Vaticano II - Dei Verbum 12 - “Como Deus na Sagrada Escritura falou por meio de homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura para saber o que ele quis nos comunicar, deve investigar com atenção o que os autores dos livros sagrados realmente quiseram significar e aprouve a Deus manifestar por meio das palavras deles.” (Dei Verbum 12).
3. Da contracapa do livro "Homossexualidade: Orientações formativas e pastorais", de A. Gomes e J. Trasferetti, Ed. Paulus, 2011. Grifos nossos. Tweet
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